PARA NÃO CONTINUAR ERRANDO – Capitalismo para o século XXI (Parte 2)*

Publicado em
23 de Dezembro de 2019
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Não há dúvidas que o sistema capitalista propiciou permanente melhora nos processos produtivos, na produção e no padrão de vida das pessoas, mas privilegiou poucos em detrimento de muitos. Apenas com base em exemplos mais recentes, a insatisfação com relação a isso foi retratada nos EUA, em 2011, quando o movimento denominado “Occupy Wall Street” já criticava o sistema vigente, posto que este era o maior responsável por privilegiar o 1% mais rico da população em detrimento dos 99% mais pobres. Pior: ainda dificultava o caminho dos “mais pobres” para “galgar” posições melhores. Fenômeno idêntico, de falta de oportunidades, também ocorre no Brasil (1).
 
A esse respeito, vale lembrar também o sociólogo italiano Domenico De Masi, professor da Universidade La Sapienza de Roma, que em seu livro publicado no Brasil pela Sextante em 2019 (“Uma simples revolução - Trabalho, ócio e criatividade, novos rumos para uma sociedade perdida”), faz corretas observações sobre o relatório elaborado pelo Institute for Policy Studies, “Executive Excess 2000” (2). O relatório demonstra, de forma precisa e clara, como nos 10 anos anteriores o salário do trabalhador médio americano aumentou 27%, os lucros empresariais aumentaram 116%, o valor das empresas na bolsa aumentaram 297% e a remuneração dos CEOs aumentaram 535%. De Masi, inclusive, cita uma das conclusões do relatório: “acreditamos que diferenças excessivas sejam incompatíveis com o principio de democracia sadia e de justiça econômica”. 
 
Ainda, segundo De Masi, só os altos executivos das empresas que ocupavam os primeiros 50 lugares na classificação da Revista Fortune detinham, juntos, “stock options” (como forma de premiar o bom desempenho de seus principais executivos, eles tinham o direito de comprar, num prazo futuro previamente estabelecido, ações da empresa pelo valor vigente no ano de conquista desse direito) em um valor cinco vezes maior do que a remuneração todal dos 91 milhões de americanos enquadrados na faixa mais pobre da população. Nos últios 15 anos, essas desigualdades aumentaram na mesma proporção assustadora que a crise mundial desencadeada pelos bancos americanos”.
 
Vale à pena, aqui, citar novamente o economista francês Thomas Piketty, que há 5 anos atrás escreveu o livro “O Capital no Século XXI”. No livro Piketty demonstra com clareza e números reais (ele consolidou números e informações coletadas em vinte países dos últimos duzentos anos), que “o crescimento econômico e a difusão do conhecimento ao longo do século XX impediram que se concretizasse o cenário apocalíptico preconizado por Karl Marx, mas, ao contrário do que o otimismo dominante após a Segunda Guerra Mundial costuma sugerir, a estrutura básica do capital e da desigualdade permaneceu relativamente inalterada” (grifos meus), traduzindo-se “numa concentração cada vez maior da riqueza, um círculo vicioso da desigualdade que, a um nível extremo, pode levar a um descontetamento geral e até ameçar os valores democráticos”. E, entre outras, fez duas observações que nos levam a refletir: 1ª. “a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam”, e 2ª. “se deve sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos” (grifos meus).
 
Lamentavelmente, na medida em que esse processo – que não se iniciou neste século - separou ainda mais as pessoas, gerando grupos cada vez menores de pessoas ricas, cada vez mais ricas e poderosas, as críticas foram aumentando e dando margem ao crescimento dos “ismos”. Como escrito pelo professor de economia e políticas públicas da Universidade Oxford, Paul Collier, em seu recente livro “O Futuro do Capitalismo – Enfrentando as Novas Inquietações”, “uma ideologia oferece a sedutora combinação entre fáceis certezas morais e uma análise que se aplica a tudo, fornecendo uma resposta confiante a qualquer problema”. Ainda segundo Collier, “os populistas dispensam até a mais rudimentar análise de uma ideologia, saltando diretamente para soluções que soam verdadeiras durante meio minuto” (grifos meus). Na verdade são estratégias para que a verdadeira discussão não seja realizada, isto é, com uma visão mais pragmática, que busque diagnosticar e conhecer os problemas como eles realmente são, única forma de se desenvolver soluções a favor do interesse de todos. 
 
Extremistas de direita, de centro ou de esquerda e representantes de todos os demais “ismos”, foram cooptados pelos “donos do poder” que, juntamente com as classes dos mais instruídos e da alta burocracia governamental, estabeleceram sistemas políticos, e até mesmo culturas, que continuam a favorece-los. Perdeu-se a ética. Movimentos nacionalistas, ou de defesa do individualismo ou da meritocracia, de inclusão social ou de defesa dos direitos dos mais pobres, misturados ou separados, foram temas que passaram a fazer parte de todos os discursos, mas sempre com viés ideológicos e sem praticidade.
 
Como escreveu o jornalista David Brooks (texto traduzido por Terezinha Martino, publicado no Estadão dia 08 pp): “o capitalismo é realmente bom na obtenção de algo que o socialismo é realmente ruim: criar um processo de aprendizado que auxilia as pessoas a encontrarem a resposta para alguma coisa. E tem um processo competitivo impulsionado pelo lucro para incentivá-lo a aprender e inovar”. Mais adiante: “a resposta para os problemas do capitalismo é um capitalismo mais amplo e mais equitativo (grifos meus). Necessitamos de uma injeção maciça de dinheiro e reformas nos nossos sistemas de ensino. Precisamos de programas sociais que não só subsidiem o consumo das pessoas pobres, mas sua capacidade de produzir. Um grande erro dos conservadores foi achar que tudo o que torna o governo mais intervencionista também torna os mercados menos dinâmicos. 
 
Ainda, segundo Brooks, “a discussão é entre uma versão de capitalismo democrático, como em EUA, Canadá e Dinamarca, e formas de capitalismo autoritário, como na China e na Rússia”. E resume: “Nossa tarefa é lograr a versão mais ampla e justa de capitalismo”. Ou seja, necessitamos de um capitalismo melhor e mais justo.
 
Considerando-se portanto, que o sistema capitalista demonstra extrema dificuldade para resolver os problemas ligados à distribuição de rendas e à desigualdade (3), não é possível permitir que políticas ditas liberais os ignorem e que pseudos-economistas compliquem ainda mais a vida do cidadão comum, querendo dar à ciência econômica uma exatidão impossível e na qual as políticas públicas se resumem ao controle e à administração do caixa, atividades elevadas a únicos e soberanos instrumentos de política econômica. 
 
Em 519 anos de existência, o Brasil não fugiu do modelo mundial e sempre privilegiou aqueles que tem poder. E não só criou uma “Constituição” para legitimar e consolidar esse poder, como instalou uma cultura que inibe qualquer pensamento contrário. Direita ou esquerda, civil ou militar, sempre foram cooptados por aqueles que tem poder, ou seja, aqueles que estão no topo da pirâmide desse processo cruel de concentração de renda.   
 
Como já escrito, se dá pouca importância (em alguns casos são totalmente ignorados) ao relatório que indica que nosso IDH (Índice de Desenvolvimento Econômico), elaborados pela ONU e que avalia saúde, educação e renda, nos coloca na 79ª posição entre 189 países analisados. O Brasil obteve o índice de 0,761. O primeiro colocado é a Noruega com 0,954. Mas uma observação importante deve ser feita: o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano), em seu Relatório de Desenvolvimento Humano 2019, ao ajustar-se o IDH levando-se em consideração as distorções brasileiras nos quesitos saúde, educação e renda, mostra que nosso IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade) cai para 0,574, e leva o Brasil para a 102ª posição. Ainda, segundo o PNUD, o 1% dos brasileiros mais ricos, ficam com 28,3% de toda a renda nacional. Se aumentamos a abrangência e analisamos os 10% mais ricos, verifica-se que eles possuem 41,9%. Ainda, analisando-se o 1% mais rico da população, o Brasil, nada mais nada menos, tem a 2ª maior concentração do mundo, atrás apenas do Qatar que concentra 29%!
 
Nosso próprio sistema tributário também é injusto e concentrador de renda (4). Considerado o 184º pior dentre 190 países pesquisados pelo Banco Mundial, a arrecadação se dá basicamente sobre o Consumo, equivalente a 54,5% do total arrecadado. Em seguida vem a Renda, com 20,8%, a Previdência, com 20,3% e a Propriedade, com 4,4%. Os dados são relativos a 2015. As informações são do Ministério de Economia e foram compiladas em trabalho apresentado pelo economista e ex-deputado federal Luiz Carlos Hauly (“Reengenharia Tecnológica Tributária”) e que serviu de base para a elaboração da PEC 110/2019 em tramitação no Senado.
 
Depreende-se desse relatório, dois outros pontos importantes: 1º) como o principal item arrecadatório é o Consumo, a carga tributária recai principalmente sobre os mais pobres, posto que são eles que gastam quase que toda a renda em bens de consumo. Segundo dados apresentados, aqueles que ganham até dois salários mínimos comprometem 54% de suas rendas com tributos, enquanto aqueles com trinta salários, somente 29% (5); 2º) a carga tributária brasileira não é a mais alta como se apregoa. Na Dinamarca a carga tributária equivale a 44,8% do PIB dinamarques, na França, equivale a 45,2%, no Reino Unido, 32,5%, na média dos países da OCDE, 34%, nos EUA, 26,2% e no Brasil, 32,9%.
 
Finalizaremos o texto (Parte 3) na próxima semana. Que tenham todos um Feliz Natal!
 
(1) “A igualdade não é um direito – é o resultado do que o cidadão aprendeu”, escreveu o jornalista J.R. Guzzo no Estadão de 08 pp. Ao comentar a última avaliação sobre qualidade da educação no mundo, feita em 2018, que colocou o Brasil, dentre 79 países analisados, entre os 20 piores. Escreveu Guzzo: “ainda não foi inventada neste mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente – apenas decente, só isso. Vamos combinar mais uma coisa: só há uma chance na vida de adquirir os conhecimentos básicos para a melhoria da condição social de quem nasceu pobre, e essa chance é a escola básica. Se for perdida, ela não volta nunca mais”. Concluiu Guzzo: “É inútil, como fazem nove entre dez políticos, comunicadores e cientistas sociais, querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos. Não há como ser igual nos méritos, ao mesmo tempo, se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais.
Infelizmente a educação no Brasil, como se depreende das últimas pesquisas, dentre elas o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) organizada pela OCDE e realizada com estudantes de 15 anos de idade, à cada três anos, para avaliar habilidades de leitura, matemática e ciências (a cobertura desta última pesquisa foi, em média, de 88% dos estudantes dessa faixa etária nos 79 países pesquisados), fortalece a continuidade do processo de concentração de renda. O Brasil, na média geral, classificou-se entre os 15 últimos países (58º em Leitura, com nota 413; 66º em Ciências, com nota 404 e 73º em Matemática, com nota 384. Os primeiros colocados, respectivamente, obtiveram notas 555, 590 e 591). Entretanto, se somente fossem analisadas as escolas que pertencem à rede privada, a posição do Brasil seria a 10ª, com 510 pontos. Uma comparação levando-se em consideração somente com as escolas públicas brasileiras, nas quais se concentram os estudantes das famílias mais pobres, a pontuação geral é de 395 e a posição alcançada é a 66ª.
 
(2) Organização norte-americana, fundada em 1963, do tipo “think tank”, com base em Washington, que analisa a política, a economia, os direitos humanos e a segurança nacional, nos Estados Unidos e em todo o mundo;
 
(3) “O fato é que, com o avanço da tecnologia e com as tarefas desempenhadas pelos trabalhadores divididas em diversas etapas, os donos dos meios de produção puderam aos poucos ir substituindo as etapas mais simples e repetitivas pelas máquinas. E aí, aos trabalhadores que eram responsáveis por essas etapas só restou a opção de aceitar ganhar menos e se tornar responsável (com sorte) por alguma outra etapa mais simples do processo produtivo, que a tecnologia ainda não fora capaz de substituir por uma máquina”, escreveu Eduardo Moreira (engenheiro e economista, fundador da Brasil Plural e da Genial Investimentos), em seu livro “Desilgualdade & caminhos para uma sociedade mais justa”, publicado pela Civilização Brasileira em 2019;
 
(4) Como escreveu o advogado e especialista em Direito da Economia pela FGV (Posfácio do livro de Eduardo Moreira aqui já citado), ao comentar sobre planejamento tributário, “toda a legislação (sobre tributos) é feita para privilegiar quem detém patrimônio, em detrimento daqueles cuja renda apenas se destina ao sustento e cumprimento das obrigações básicas”. E conclui: “os exemplos (sobre tributação injusta e incorreta) são incontáveis e apenas ilustram um arcabouço jurídico cuja matriz ideológica é a perpetuação da exploração dos mais pobres pelos mais ricos”;
 
(5) “O Brasil possui uma das cargas tributárias sobre renda, lucro e ganho de capital mais baixas do mundo, ao mesmo tempo que sua carga sobre bens e serviços está entre as maiores do planeta. Tal discrepância é a principal responsável pela perpetuação da desigualdade, origem de todos os problemas sociais que o país enfrenta”, escreveu Eduardo Moreira em livro aqui já citado.
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