O problema não é o Auxílio Emergencial, mas sim de quem retirar recursos para viabilizá-lo.*

Publicado em
16 de Fevereiro de 2021
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Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
 
Embora ainda seja muito contestado por muitos, é indiscutível que a retomada do crescimento econômico somente poderá ocorrer quando a Demanda Agregada, e mais precisamente o Consumo das Famílias, voltarem a crescer. E isto somente acontecerá à partir do momento que se tenha a pandemia minimamente controlada. Indiscutível, também, que esse mínimo controle sobre a pandemia somente poderá ser obtido com a rápida vacinação de toda a população brasileira.
 
Infelizmente, com relação a esses assuntos, o governo federal tem sido incompetente e incapaz de adotar providências e diretrizes corretas e à tempo de se evitar maiores danos. Não há uma agenda econômica, seja para o curto ou para o longo prazo, e também não existe um plano claro e concreto de combate à pandemia (1). Pior do que isso só mesmo as indevidas e extemporâneas discussões relacionadas às próximas eleições, as incorretas providências com relação ao desmatamento da Amazônia (2) e ao perigoso “armamento da população brasileira”. 
 
Em crises desse tipo, como se sabe, o governo precisa exercer seu papel de principal protagonista, pois sua atuação, além de fundamental é essencial. Mas isso, até mesmo os grandes defensores do ‘liberalismo econômico sabem. Pelo menos é o que eu espero. 
 
Neste início do ano de 2021, como eu acreditava, tudo piorou (“A realidade, às vezes, é cruel. Mas é preciso encará-la” e “2021 poderá ser ainda mais difícil do que 2020. Tudo dependerá dos brasileiros”, foram os títulos dos meus artigos publicados em 28/12/20 e 27/01/21, respectivamente), pois o fim do Auxílio Emergencial e a demora para a sua renovação, tem colocado milhões de famílias brasileiras em dificuldades desnecessárias (3). E este é o “X da questão”, como se dizia antigamente. Não é possível que ainda se discuta, somente sob a ótica econômica ou financeira, a adoção ou não de providências humanitárias.  
 
E não bastando tudo isso, ainda temos, por parte do desgoverno federal, um ‘negacionismo’ insano, total desrespeito à ciência e às melhores práticas de combate à pandemia. Sem saber o que fazer para que o Brasil retome o caminho do crescimento econômico (não há qualquer plano econômico), afronta diariamente a Democracia e se dedica, indevida e retrogradamente, a discutir agendas que tratam da “moralidade de costumes”.
 
O auxílio emergencial não pode ser discutido apenas sob a ótica de se ter ou não recursos. É evidente que os recursos são escassos, mas é óbvio que a proteção aos “mais vulneráveis” é necessária, pois não se pode deixar pessoas morrerem de fome, é fundamental, pois esse talvez seja o principal papel do Estado moderno, e é essencial, pois exige-se estabilidade social, política e econômica. Lamentavelmente, a grande maioria de analistas ao comentar a respeito do Brasil para este e os próximos anos, apenas chama a atenção para o perigo da “irresponsabilidade fiscal”, sem sequer se preocupar com possível “irresponsabilidade social”, na qual a vida de milhões de brasileiros estará sendo sacrificada. E para isso utilizam as narrativas de sempre nas quais as únicas e terríveis consequências possíveis seriam a perda da estabilidade econômica, o aumento da inflação, aumento do dólar, menor crescimento, perda dos níveis de investimento etc. Nenhum comentário sobre a possibilidade de se perder vidas, pela pandemia ou pela fome. Mais interessante é que na defesa dessas ideias – repetidas à exaustão e que de tão repetidas transformam-se em verdades imutáveis (“dogmas”) -, muitas dessas pessoas ainda se apresentam cuidadosos e preocupados com o bem estar da população mais pobre. A narrativa é a de sempre: “a irresponsabilidade fiscal será paga por todos, especialmente os mais pobres”. Ora, ora, ora! E não foi sempre assim? Os maiores danos causados pelas “irresponsabilidades” – fiscal ou social - de nossos governantes e de parte da classe dirigente, não foram sempre suportados pelas populações mais carentes?
 
O fato indesmentível é que o Brasil não fez o que deveria ser feito. A reforma previdenciária, que somente foi aprovada por mobilização e ação do poder legislativo, não conseguiu os resultados que dela se esperava. A reforma tributária, que melhor e mais justamente poderia dividir o peso dos impostos e aumentar o poder aquisitivo dos mais pobres (4), não será feita pelo desgoverno atual, posto que não é de seu interesse e, muito menos, das bases políticas que o apoiam, incluindo aí o Centrão e parte do empresariado e da elite brasileira que ‘não gostam’ de ser tributados.
 
Com relação à necessidade de se rever todo o conjunto de benefícios, subsídios e renúncias fiscais existentes, vale destacar o que escrevi em artigo específico (“Discutir o que é essencial: o bem do Brasil e dos brasileiros. Difícil, né?”), dia 02/11/2020: “Nos últimos 17 anos (de 2003 a 2019), em valores de 2019, o total de recursos da União destinados à conta “Subsídios”, foi de R$ 5,1 trilhões. A média anual, por volta dos R$ 297,5 bilhões, equivale a 4,76% do PIB. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, o total de subsídios representava 3,0% do PIB, vindo a subir sistematicamente até alcançar o ‘pico’ em 2015 (governo Dilma), com 6,7% do PIB. Em 2018, último governo de Temer, o percentual foi de 4,61% do PIB (R$ 317,3 bilhões) e no primeiro ano do governo Bolsonaro o percentual subiu novamente para 4,8%. Em 2019 esses recursos alcançaram o valor de R$ 348,3 bilhões, ou seja, 9,8% à mais do que o ano anterior! 
 
Uma reforma na conta denominada ‘subsídios’, teria, como é óbvio, que mexer com setores empresariais importantes e pessoas físicas influentes. Para que se tenha uma ideia, somente com seis dessas contas (dados de 2019: Simples Nacional: R$ 75,9 bilhões; Isenções, não tributações e deduções permitidas na declaração do IRPF: R$ 53,4 bilhões; Zona Franca de Manaus: R$ 22,2 bilhões; Isenções ou imunidades das Entidades Sem Fins Lucrativos: R$ 28,5 bilhões; e Desoneração da Folha: R$ 9,8 bilhões), chega-se a R$ 189,8 bilhões em 2019 (54,5% do total). Para 2021, segundo o PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual), que tramita no Congresso Nacional com o número 28/2020, somente com essas seis rubricas e adicionando-se R$ 5,9 bilhões destinados ao setor automotivo e R$ 4,5 bilhões para embarcações e aeronaves, o total de renúncia é de R$ 200,2 bilhões. Redução de 20% equivaleria a R$ 40,0 bilhões. Reduzindo-se apenas 5% para as demais contas, obtêm-se mais R$ 7,4 bilhões. Total possível a ser proporcionado ao governo, cerca de R$ 47,4 bilhões por ano.  
 
A reforma administrativa, por sua vez, que para gerar resultados importantes precisaria tirar privilégios de parte dos funcionários públicos de todos os poderes, também não será sequer discutida seriamente, posto que implicaria em mexer com setores poderosos da sociedade e da política que compõem a base de sustentação do atual desgoverno.   
 
Como já escrito por mim em artigo publicado anteriormente (5): “Entre os três poderes, pela ordem, os grandes privilegiados são o judiciário e o legislativo. Segundo dados de 2019 do IPEA (Atlas do Poder Público), no poder executivo, apenas 15% dos funcionários recebem mais do que R$ 5 mil de salário por mês. No legislativo, mais de 35% e no judiciário, mais de 85%. Segundo dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça, em agosto do ano passado, o Poder Judiciário brasileiro, em 2019, custou R$ 100,2 bilhões”, isto é, 1,405% do PIB Nacional, enquanto em países como Portugal, Espanha, Suíça e Reino Unido, esse percentual é menor do que 0,4%. Mantido percentual como esse, a economia para o governo brasileiro seria de aproximadamente R$ 72 bilhões por ano. Que se consigam R$ 36 bilhões!
 
Além do que, a Previdência do Setor Público continua sendo um dos ‘maiores ralos’ do dinheiro arrecadado pelo governo. Segundo dados do IBGE e do IPEA, nos últimos 15 anos (2004 a 2018), o déficit da Previdência Social do Setor chegou a R$ 1,3 trilhão (para cerca de um milhão de pessoas), enquanto que o déficit do INSS (30 milhões de pessoas), não ultrapassou dos R$ 450 bilhões. Enquanto nesse período, cada servidor público gerou R$ 1,3 milhão de déficit para a previdência, o trabalhador no sistema INSS gerou déficit de R$ 15 mil (87 vezes menos!!!!!).
 
O dilema que muitos comentam, de um lado a busca imediata do equilíbrio das contas públicas e a não renovação do auxílio emergencial, e de outro, renovação do auxílio, com consequente desequilíbrio fiscal e demais problemas decorrentes, precisa ser visto de uma outra forma, pois é evidente que a busca a qualquer custo do equilíbrio fiscal, para alegria do “mercado” e em detrimento do renovação do auxílio emergencial, aprofundaria substancialmente a pobreza e a miséria de uma população sofrida e já sem esperanças. É evidente que ignorar os problemas sociais deste País não é o caminho (6).
 
O real dilema, e é isso que o (des)governo e o Congresso devem começar a discutir seriamente, é em que lugar separar os recursos necessários para a manutenção do auxílio emergencial. Como aqui narrado, fontes não faltam, mas é preciso escolhê-las, de forma criteriosa, justa e correta e, mais do que isso, estar disposto a ‘encarar’ boas brigas. O “Centrão” e o desgoverno atual não podem prevalecer. 
 
Como escreveu o professor de economia José Márcio Camargo (“A solução está no Congresso” – Estadão de 13/02/21): “Só existe uma saída para esse dilema: reduzir outros gastos obrigatórios, que correspondem a 95% do total de gastos do Orçamento”.
 
Indiscutivelmente há um grupo enorme de pessoas e entidades com muitos mais recursos para ceder do que as classes mais pobres. Não só em momentos de crise, mas sempre. As classes mais vulneráveis é que não podem, em hipótese alguma, pagar pelos erros cometidos pela classe dirigente brasileira e seus desgovernos de plantão. E mais, o auxílio emergencial deve perdurar até que a economia comece, de fato, a dar sinais de crescimento e com concreta geração de empregos. Paralelamente ao que já aqui se comentou, é o momento deste desgoverno e seu ministério da Economia, começarem a elaborar um plano econômico com início, meio e fim, cujo principal objetivo seja a geração de empregos. Esses são os objetivos de governos democráticos e republicanos. Esses são os objetivos maiores da economia. O resto é “papo” de tesouraria e de quem não tem compromissos com a população brasileira.
 
(1) O Instituto Lewy de Pesquisas, da Austrália, ao analisar as práticas adotadas de combate ao Coronavírus em 98 países, classificou o Brasil em 98º lugar. Com base em critérios objetivos (casos e mortes confirmadas, casos por milhão de habitantes, casos em proporção a testes e testes por mil habitantes), coube ao Brasil a última colocação. Os três primeiros: Nova Zelândia, Vietnã e Taiwan.
Interessante é que mesmo alcançando os maiores níveis de casos e mortes pelo Covid-19, este desgoverno reduziu os recursos que seriam direcionados à manutenção das UTIs nos Estados.
 
(2) Segundo dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), no ano de 2012 o Brasil alcançou a menor quantidade de desmatamento na Amazônia Legal (em km²), desde que se iniciou a medição. Entretanto, no desgoverno Bolsonaro, o desmatamento alcançou os maiores ‘picos’: 10.129 km² em 2019 e 11.088 km² em 2020. Aumento, em 2020, de quase 143% se comparado com o ano de 2012! Em entrevista ao Estado, à jornalista Érika Motoda (11/02/21), explicou o cientista Carlos Nobre do Instituto de Estudos Avançados da USP: “minha avaliação é de que explodiu a boiada do enfraquecimento da legislação ambiental a partir da fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (na reunião ministerial de abril de 2020). Havia uma mensagem caótica do governo federal. Por um lado, a ação no campo dos militares; por outro, uma ação infra legal de enfraquecimento da legislação ambiental. Esta última ganhou a guerra. O criminoso que grila terra, desmata área ilegal e usa fogo quando é proibido, se sente empoderado. A interpretação do criminoso é de que o Exército está lá para inglês ver, dar resposta de melhoria da imagem do País no exterior, mas não melhorou”;
 
(3) Em janeiro de 2021, segundo dados das PNADc (Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios Contínua), a taxa de pobreza extrema, de 12,8%, já é maior do que a taxa do começo de 2011! Cerca de 27 milhões de pessoas estão nessa condição. Na época do Auxílio Emergencial, medido no segundo semestre do ano passado, essa taxa foi a menor da série histórica registrada: 4,5% e 9,4 milhões de brasileiros. O ingresso líquido da Poupança, em janeiro de 2021, foi o maior saldo negativo desde janeiro de 2019. Naquele ano, o saldo entre depósitos e saques foi negativo em R$ 12,356 bilhões. Neste ano, mês de janeiro, o saldo negativo ficou em R$ 18,154 bilhões. As pessoas que tem, estão sacando suas poucas poupanças para sobreviverem;
 
(4) Enquanto o Brasil tem a maior parte de sua tributação sobre o Consumo (54,5%), os países da OCDE tem sobre a Renda (34,1%). As populações mais pobres gastam a grande parte de suas rendas no Consumo, portanto, quem mais paga imposto no Brasil, proporcionalmente aos salários que recebem, são aqueles que ganham menos. A própria transformação de trabalhadores CLT em pessoa jurídica (“Pejotização”), ressalve-se, mais precisamente para a mão-de-obra mais qualificada, fez com que essa classe de trabalhadores passasse a ser tributado, em média, apenas 35% do que normalmente se tributa o empregado registrado, contribuindo ainda mais para o aumento da desigualdade. A tributação sobre a Renda no Brasil (20,8% do total arrecadado) é muito menor do que a tributação média dos países da OCDE (34,1%). Estudos realizados pelo Banco Mundial (“Doing Business”), relativos ao ano de 2018, dão conta de que o sistema tributário brasileiro atual é considerado o 184º pior entre 190 países pesquisados;
 
(5) “Reforma Administrativa: panaceia ou solução”, artigo de Paulo Roberto Guedes publicado no Guia do TRC do dia 06/10/2020. “Servidor público concentra 6 das 10 ocupações mais bem pagas”, foi o título do artigo publicado pela Folha de São Paulo, dia 25.08.20. Ainda, segundo o artigo, quatro dessas ocupações fazem parte das 5 TOP. E segue o artigo: “Membros do Poder Judiciário, além de diplomatas, só perdem em remuneração para donos de cartórios, com renda média mensal acima de R$ 100 mil”. Segundo especialistas, a vantagem salarial e a estabilidade do funcionalismo legitimam mecanismos temporários de redução de carga horária e de vencimentos em caso de ameaça de descumprir o teto de gastos. No plano federal, isso poderia abrir espaço anual de R$ 15 bilhões no Orçamento. Sob a Covid-19, enquanto os servidores foram preservados, mais de 16 milhões de brasileiros tiveram cortes de 25% em seus salários;
 
(6) “Talvez nunca como na atualidade a pátria tenha sido tão maltratada. O desprezo, a arrogância e a autossuficiência no trato dos problemas sociais, o desrespeito aos direitos humanos, à cultura, à educação e à imagem do País, e outras mazelas, têm uma origem: o poder pelo poder, desvinculado dos interesses e das necessidades nacionais. O poder para o desempenho do mando, sem nenhuma consideração pelos anseios e aspirações do povo. Mando refletido numa retórica irreal, falaciosa e odienta”, escreveu o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira no Estadão dia 13 pp (“Pátria mal amada, pátria maltratada”).
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