Sociedades baseadas na responsabilidade social não “deixam como está para ver como é que fica”

Publicado em
22 de Março de 2020
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Difícil saber quais serão as consequências do “coronavírus” na economia mundial e, em particular, na economia brasileira, mas alguma coisa precisa ser feita. O “laissez faire laissez passer” não resolve!

Enquanto o remédio e a vacina não veem, o que mais se tem sugerido para evitar crescimentos exponenciais da pandemia são, lavar com água e sabão constantemente o rosto e as mãos (utilizar álcool gel quando isso não for possível), o ‘isolamento’ e o ‘distanciamento social’. Impacto imediato: paralisação de muitos dos diversos setores econômicos responsáveis pela geração do PIB (Produto Interno Bruto de bens econômicos e serviços).

O fato é que, juntamente com o desastre humanitário, neste momento já considerado como inevitável, pois milhares de vidas humanas foram perdidas, e outras, sabe-se lá quantas, ainda virão a ser, o mundo está diante de uma de suas maiores crises. De longa duração, ao que parece, e com consequências inimagináveis, as providências para diminuir a disseminação da doença, terão que ser drásticas, incluindo-se a proibição do “direito de ir e vir”. O isolamento que se propõe terá efeitos significativos e que deverão mudar, e muito, o próprio comportamento das pessoas.

Evidente que diante dessa alteração profunda na vida de todas as pessoas, o cidadão brasileiro, que já há algum tempo vive com extrema dificuldade, uma vez que seu País está em crise há pelo menos 6 anos, agora, na medida em que a pandemia avança, enfrentará dificuldades ainda maiores.

As camadas mais pobres da população brasileira – a imensa maioria, diga-se de passagem -, que ainda terão que sair de casa para trabalhar, que quase nunca tem recursos para comprar álcool gel ou sabonete e que nem sempre tem disponível em suas casas, água limpa e tratada, deverão ter suas possibilidades de atendimento do receituário proposto, bastante diminuídas. Há que se lembrar, por exemplo, que cerca de 100 milhões de brasileiros (quase 50% de toda a população), seja por viver nas periferias das grandes cidades ou em zonas rurais desprovidas, não tem estruturas mínimas de saneamento básico, isto é, tratamento adequado de água e esgoto. Consequentemente, parece inevitável que esse enorme contingente de pessoas, sofrerão de forma muito mais contundente os impactos maléficos do coronavírus (1).

Não há dúvida que quedas nas atividades econômicas diminuirão as receitas empresariais que, por sua vez, as obrigarão a economizar recursos e proteger o máximo possível o caixa. Complementarmente, suspensão das compras de insumos e dispensa de mão-de-obra deverão compor a lista de providências urgentes e imediatas. Cálculos prévios realizados por entidades patronais de bares, restaurantes e lojistas no Brasil, por exemplo, indicam que até o final de abril cerca de 5 milhões de vagas de trabalho poderão ser fechadas no setor!

Esse cenário de aumento do desemprego (2), e que ainda inclui quedas da inflação e da taxa de juros, além de realista, parece estar bem próximo. E à se considerar, que as pequenas e médias empresas, grandes geradoras de emprego, deverão ser as mais afetadas, posto que no Brasil a grande maioria delas não trabalha com planejamento, operam ‘quase’ sem reservas financeiras e às vezes, perigosamente alavancadas, os problemas ficam ainda mais complexos.

Portanto, a atuação do governo brasileiro deveria ser orientada não só no sentido de se combater a proliferação da doença – essencial, principalmente junto às populações mais pobres e desamparadas –, mas também no sentido de se manter um nível de atividade econômica e de geração de empregos compatíveis.

Como é sabido, o Brasil, antes mesmo da pandemia, já se encontrava em uma crise interminável, cujas origens estão nos erros de execução da política econômica, passados e presentes (“A crise brasileira é resultado de erros nossos. Passados e Atuais”, foi o artigo publicado por mim dia 8 pp no site do Guia do TRC) que, lamentavelmente, acentuaram a desigualdade e a concentração de renda no País (3). Isso, por si só, fará com que o Brasil sofra mais os efeitos maléficos do coronavírus do que muitos outros países.

Se antes, em face do enorme desemprego reinante nos últimos 6 anos, o País tinha dificuldades para retomar o crescimento econômico, pois carecia de uma demanda agregada que mantivesse níveis de investimentos sustentáveis, agora teremos também, um problema enorme pelo lado da oferta, seja pela falta de muitos dos bens intermediários importados (haverá, sem dúvida, uma restrição na importação de insumos, notadamente aqueles produzidos pela China e/ou de média e alta tecnologia) ou seja por falta de mão de obra, impedida de trabalhar, doente ou em ‘casa’ em virtude da pandemia.

E mais uma vez, exauridos os instrumentos de política monetária, a resposta está nas políticas fiscais. Governantes, executivos, economistas e empresários, mesmo os mais “liberais”, já concordam que é preciso diminuir o uso de políticas exclusivamente restritivas e que apenas cuidavam das “finanças” do Estado. Se em algum momento foi perdida a oportunidade de se adotar medidas para diminuir o desemprego, com quedas reais e crescentes na renda familiar (e seus perversos impactos, sociais e econômicos), parece que agora surgem novas oportunidades.

Tanto que as sugestões para que o Estado seja mais atuante são de diversos tipos e origens: “intervenção do governo para prover liquidez ajudando empresas” (grifos meus), especialmente junto às pequenas e médias, pois são grandes geradoras de emprego e exigem baixos níveis de investimento, defendem os economistas Pierre Olivier Gourichas, Ricardo Reis e Cátia Batista, citados em artigo publicado pelo jornal Nexo deste último dia 18, escrito pelo economista Cláudio Ferraz (4). Ou, como comentam no mesmo artigo os economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, “que o governo atue como um garantidor de fluxo de caixa para trabalhadores e empresas. Funcionários sem a possibilidade de realizar seu trabalho continuariam empregados mas receberiam um seguro desemprego” (grifos meus) (5).

Ao dizer que “agora é economia de guerra” (entrevista dada ao jornalista do Estadão dia 20 pp), o professor do Insper, Sérgio Firpo defende que “o governo deve planificar o que precisa ser produzido, garantir comida e remédios para todos. E dar subsídios a setores específicos” (grifos meus) (6).

Quando empresas param de vender, param de funcionar, continuam a ter que pagar dívidas. Tem que se implementar um modo de rolar esse tipo de inadimplência” (grifos meus), recomenda o economista e ex-presidente do Banco Central, Affonso C. Pastore!

Ainda, segundo o artigo de Claudio Ferraz, aqui já citado, é essencial que se protejam todos os trabalhadores, inclusive aqueles do mercado informal (7). E conclui o economista Cláudio Ferraz: “Mas a situação que se aproxima é de uma gravidade difícil de prever, e salvar a vida e aliviar o sofrimento do maior número de pessoas deve ser a prioridade do governo” (grifos meus).

“É preciso usar a política fiscal”, prescreve o professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, economista Barry Eichengreen, em entrevista para a repórter Beatriz Bulla (Estadão de 18 pp). “Os governos terão de usar o espaço fiscal para injetar gasto público nas áreas em que o investimento privado está paralisado (grifos meus). Ao dizer que os bancos centrais sozinhos não conseguirão resolver a crise econômica global causada pelo “Coronavírus”, pois o fato é que as “pessoas pararam de gastar, empresas pararam de consumir e pessoas vão em breve parar de receber salários”, torna-se essencial que haja gasto público. E se houver ajuda do Fundo Monetário Internacional, melhor ainda.

Em artigo específico, ao defender a utilização de cerca de R$ 310 bilhões em políticas voltadas à saúde, proteção social e setorial, a economista Monica De Bolle resumiu: “embora seja um montante considerável, o mais arriscado nesse momento não é o que vai acontecer com o déficit ou com a razão dívida/PIB – até porque não há investidor no mundo, hoje, preocupado com a sustentabilidade das contas públicas (grifos meus). E finaliza De Bolle: “para viabilizar o que proponho, precisamos da imediata flexibilização da meta fiscal e da suspensão do teto de gastos por um período de dois anos. Deixo claro que o teto é importante para sustentabilidade fiscal de longo prazo – mas, o momento é de calamidade” (8).

“Diante da pandemia do novo coronavírus, o ajuste fiscal deixa de ser prioridade. Urgência é salvar vidas, e a economia”, escreveu o Estadão em seu editorial de 19.03.20, “A voz da responsabilidade”. E continua: “O ajuste fiscal é uma evidente necessidade do País. No entanto, diante da pandemia do novo coronavírus, o reequilíbrio das contas públicas deixa de ser prioridade absoluta. A urgência agora é salvar vidas e prover todas as condições possíveis para que a economia seja afetada o menos possível”. Para finalizar: “Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. A reação diligente das instituições é um fato extremamente positivo. Se houve casos de cegueira deliberada em algumas autoridades, tal disfuncionalidade não foi a resposta habitual. A responsabilidade teve voz”.

Vale comentar que o Palácio do Planalto, após solicitação, teve aprovado por unanimidade, tanto na Câmara como no Senado, o reconhecimento de Estado de Calamidade Pública. Prevista para durar até o dia 31 de dezembro de 2020, essa medida permitirá que o Executivo realize gastos extraordinários, além daqueles que constam na lei orçamentária. Já se fala em sair de um déficit primário orçado de R$ 124,1 bilhões para R$ 200 bilhões.

Não desenvolver políticas que estimulem a geração de empregos, como tenho defendido à tempos, é um erro. Se as reformas são essenciais para a organização da economia e da sociedade brasileiras no médio e longo prazo, políticas de geração de rendas e emprego são essenciais para a sobrevivência do País. Se a política de “Teto de Gastos” foi elaborada com alguns erros, na medida em que impede a adoção de medidas urgentes e “anticíclicas”, é momento de muda-la, adaptando-a à realidade econômica, na qual mercado e Estado precisam trabalhar juntos.

No último dia 16, o ministro Paulo Guedes anunciou um conjunto de medidas para injetar cerca de R$ 147,3 bilhões na economia e que tem, como principal objetivo, proteger os mais vulneráveis. Embora elogiável providência, e independentemente de se discutir se o volume de recursos é suficiente ou não, é importante ressaltar que isso não causará qualquer “rombo” nas contas públicas, uma vez que são, em sua maioria, recursos já orçados e cuja utilização será apenas antecipada (9). Ora, se não há “rombo” nas contas públicas, porque não foi feito isso antes? Ou a crise que vivia o brasileiro comum, antes da pandemia do coronavírus não era crise?

Muitos dizem que os problemas e os riscos que não nos afetam diretamente, geralmente são ignorados. Somente quando eles, como é o caso do COVID-19, surgem em nossos quintais é que tomamos seu real conhecimento. Embora se deva reconhecer que “antes tarde do que nunca”, uma pergunta não poderá deixar de ser feita: será que é preciso uma catástrofe de amplitude mundial para reconhecermos o fato de já vivermos, há algum tempo, uma catástrofe local?

Pois é, parece que agora o aumento das despesas públicas se tornou inevitável e que a participação do Estado na economia é imprescindível. Como expressado por Jamil Chade, em artigo publicado no jornal El País do último dia 17 (“A crise que definirá nossa geração”): “Curioso, num momento de agonia coletiva, a mão invisível do mercado parece não ter poderes para lidar com um inimigo (grifos meus). Resta apenas a ironia de ver ultraliberais perguntando: onde está o Estado? A constatação é simples: a dificuldade em dar uma resposta ao vírus é o preço que o planeta está pagando por décadas investindo pouco no serviço público” (10).

Atualmente o Brasil está sem liderança e a desconfiança da população no atual governo, em que pese o bom desempenho de alguns poucos ministros, é crescente. Manter a política do nós e eles, querer fazer com que se ‘desacredite’ da ciência, da imprensa, dos institutos de pesquisa, da classe política ou das principais instituições democráticas, em nada ajuda o Brasil. Alijar o Estado da economia, num “laissez faire” ultrapassado, também não. O momento exige total convergência de objetivos e esforços multisetoriais, independentemente de ideologias, pois a superação do coronavírus e da própria crise brasileira depende, essencialmente, da solidariedade entre pessoas, entre governos e entre nações. Confiar nas autoridades públicas, todas elas, e cooperar com elas é necessário. Mas com lideranças sérias e comprometidas com o bem estar da população.

Para terminar, permito-me citar outra frase de Jamil Chade: “uma oportunidade única (a luta contra o coronavírus) para a sociedade, fechada, olhar para si mesma e se examinar. Temos como construir uma geração fincada na responsabilidade social?”

 

  1. “Por que as periferias são mais vulneráveis ao coronavírus”, artigo publicado por Juliana Domingos de Lima, neste último dia 18 no Jornal Nexo. Além da falta de saneamento básico, ao citar diversos especialistas, o artigo lista as principais dificuldades encontradas por essas imensas áreas que compõem quase que todas as cidades brasileiras: Limitações dos equipamentos de saúde, precariedade nas condições de moradia, falta de políticas de prevenção, desigualdades históricas, intervenção de poderes paralelos (quadrilhas de criminosos e milícias), e falta de ações efetivas do governo;
  2. Como se sabe, o Brasil, além de 12 milhões de desempregados ainda conta com outros 15 milhões de trabalhadores subutilizados (trabalham menos do que poderiam) ou desalentados (desistiram de procurar emprego). São 27 milhões de brasileiros sem salários ou com salários baixíssimos. Dados do IBGE dão conta de que o País, em 2018, tinha 54,8 milhões de pessoas pobres, isto é, 26,5% da população total. E dentre essas, 15,2 milhões vivendo abaixo da linha da extrema pobreza;
  3. Pesquisa Nacional para Amostra de Domicílio Continuada (PNADC), realizada pelo IBGE, mostrou que a diferença de rendimentos entre pobres e ricos no Brasil, é cada vez maior. O índice de desigualdade tem aumentado, sendo que a população 1% mais rica ganha cerca de 34 vezes mais do que ganham os 50% mais pobres. Somente em 2018, ainda segundo a pesquisa, os 10% mais pobres tiveram uma queda de 3,2% em seus rendimentos, enquanto o 1% mais rico teve sua renda aumentada em 8,4%. Importante ressaltar, também, que a falta de instrução tem contribuído para que as pessoas ganhem menos. Enquanto os assalariados com formação Superior Completa recebem em média, R$ 4.997,00 por mês, assalariados sem instrução recebem apenas R$ 856,00. Quase 83% menos!

 

O índice GINI brasileiro, que mede o nível de concentração de renda (quanto mais próximo de 1, mais concentrador de renda é), em 2018 era 0,625. Em 2019 passou para 0,627. Aumentou;

 

  1. Claudio Ferraz é professor da Vancouver School of Economics, na University of British Columbia, Canadá, e do Departamento de Economia da PUC-Rio. Diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina, ele é formado em economia pela Universidade da Costa Rica, tem mestrado pela Universidade de Boston, doutorado pela Universidade da Califórnia em Berkeley e foi professor visitante na Universidade de Stanford e no MIT;
  2. Exemplos de propostas do executivo brasileiro: a) trabalhadores que tiverem salário e jornada reduzidos, em face do coronavírus, receberão uma compensação do governo durante três meses. Essa compensação irá variar entre R$ 261,25 a R$ 381,22 mensais e segundo estudos do próprio governo, esses valores correspondem a 25% do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito se fosse demitido; b) antecipação de uma parcela de R$ 200 mensais para as pessoas com deficiência que ainda esperam na fila do INSS pela concessão definitiva do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Em síntese, pacote com iniciativas para proteger os mais vulneráveis, preservar empregos e combater a pandemia soma R$ 184,6 bilhões);
  3. Exemplo: o setor de turismo (agências de viagem, companhias aéreas e hotéis) pediu para que o governo, utilizando-se de verbas do seguro-desemprego, pague parte dos salários de 90% dos seus 380.000 funcionários no país pelos próximos três meses (notícia do Estadão de 20.03.20). Custo para o governo: cerca de R$ 1 bilhão.
  4. “Para aqueles trabalhadores informais que estão registrados no Cadastro Único, o pesquisador Marcelo Medeiros sugere uma política focalizada temporária que prevê a transferência de R$ 150 suplementares às famílias que já recebem o Bolsa Família e um auxílio de R$ 150 para as famílias que estão inscritas no Cadastro Único, mas não recebem o programa (aproximadamente 35 milhões de pessoas). E para os trabalhadores informais que não estão nesse cadastro, “o governo poderia abrir uma nova leva de registros no Cadastro Único, onde trabalhadores informais pudessem se inscrever independentemente de sua renda”. Ou, como também defendido por muitos, “é o governo partir para uma renda básica universal” (professor Claudio Ferraz, aqui já citado);
  5. Monica De Bolle pesquisadora sênior em Washington do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos, no Estadão de 18 pp.;

 

  1. Antecipação, para abril e maio, das parcelas do 13.º salário de aposentados e pensionistas (R$ 46 bilhões); antecipação, para junho, do abono salarial (R$ 12,8 bilhões); adiamento por três meses do prazo de pagamento do FGTS (R$ 30 bilhões); adiamento, também por três meses, do recolhimento da parte da União no Simples Nacional (R$ 22,2 bilhões); incorporação de mais pessoas para o Bolsa Família (R$ 3,1 bilhões);

 

  1. Jamil Cesar Chade é brasileiro, graduado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica, PUC/SP, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra (Suíça). Desde 2000 é correspondente do jornal O Estado de São Paulo na Europa.
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