Executivos precisam entender que suas ações impactam a vida de milhares de pessoas. Compreenderem e capacitarem-se para esse novo papel são exigências mínimas.

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19 de Fevereiro de 2019
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Há cerca de dois anos escrevi um artigo para ressaltar a necessidade de se debater o papel do setor automotivo em um mundo novo. Com o sugestivo título “Indústria 4.0 somente é viável se tivermos profissionais 4.0”, eu teci comentários a respeito de quais deveriam ser algumas das principais características desse novo profissional. Diante do fato de, ao longo de minha carreira profissional, ter tido muito contato com o setor automotivo, nacional e internacional, utilizei esse segmento produtivo como exemplo. 
 
Ao defender que o debate a respeito do novo papel do setor automotivo, “em um mundo completamente diferente daquele que nos acostumamos a ver até agora”, deveria ser cada vez mais intenso e frequente, eu também chamava a atenção para o fato de que os novos veículos, queiramos ou não, impactarão significativamente as cidades do futuro e seus respectivos sistemas de mobilidade. Sem dúvida providências para a diminuição da emissão de gases de efeito estufa (GEE), as limitações de movimentação em determinadas áreas ou determinados dias e a busca da segurança energética, estão na pauta de todos (1), sendo portanto, fundamental preparar-se.
 
Entretanto, o que mais me tem causado “perplexidade”, são determinados pronunciamentos de alguns dos principais dirigentes do setor automotivo, principalmente quando comentam (e comentavam no passado) a crise brasileira que abate, indiscriminadamente, todos os segmentos da economia nacional e, especificamente, o setor automotivo. Num discurso monótono e de padrão único, a maioria desses profissionais apenas reconhece como causas da crise, a incerteza política, a insegurança jurídica, a burocracia estatal, o excesso de tributos e encargos trabalhistas, a logística deficiente e a falta de políticas de estímulos e incentivos ao setor. Sem reconhecerem possíveis erros de planejamento ou de gestão de suas próprias empresas, e muito menos as circunstâncias nacionais e internacionais que impactam toda e qualquer sociedade, debitam somente ao governo toda a dificuldade pelo qual passa o setor. 
 
Nenhum comentário, por exemplo, sobre o simples fato de que aqui no Brasil já estão instaladas, desde 2014 pelo menos, fábricas e montadoras de automóveis, e correspondentes fabricantes de auto partes, suficientes para que se produzam 5 milhões de veículos por ano. A produção total de veículos (automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus) em 2018, foi de 2,881 milhões de unidades, representando apenas 57,6% da capacidade instalada. A produção esperada para 2019 é de 3,14 milhões de unidades. Mesmo em 2013, no auge do setor, quando foram produzidas 3.712.736 unidades, a utilização da capacidade instalada alcançou um pouco mais de 74%.  
 
Sabe-se que o Brasil, de fato, ainda tem potencial para aumento da frota de veículos, posto que enquanto temos uma taxa de motorização de 4,7 habitantes por veículo (em 2005 eram 8,2 habitantes), os Estados Unidos tem 1,2 e o Japão 1,6. Mas é óbvio, também, que o crescimento do setor sempre se deu em função do crescimento e do desenvolvimento do mercado doméstico e este, por sua vez, sempre foi dependente da melhoria do poder aquisitivo da população, incentivos tributários, juros satisfatórios para fabricantes e consumidores, e crédito em abundância. Atualmente, porém, seja pelo alto índice de desemprego - que ainda vai perdurar alguns anos, seja pela baixa renda de quem ainda consegue estar empregado, pelo alto custo do veículo nacional ou pela falta de crédito, o mercado doméstico continuará não sendo suficiente para atender essa capacidade instalada. A solução poderia ser o mercado externo, mas desde que se tenha, é claro, maior produtividade e menores custos de produção, como única forma de tornar nosso produto mais competitivos internacionalmente. Até lá, haja capacidade ociosa! Haja custo fixo sem a respectiva produção! 
 
A sócia-diretora da Prada Assessoria e especialista em assuntos ligados ao setor automotivo, Letícia Costa, tem sido pontual ao analisar, por exemplo, o programa Inovar-Auto: “o que se pretendia era alavancar a cadeia de produção, estimular o desenvolvimento tecnológico e a produção de carros mais modernos. Enquanto essas metas deixaram a desejar, houve um enorme grau de protecionismo à indústria local, o que levou a uma condenação da OMC (Organização Mundial do Comércio). Ainda, segundo Costa, “é um programa de proteção de mercado disfarçado de inovação (grifos meus) e sobrará muito pouco dele”. E concluiu: “algumas pessoas vão argumentar que houve aumento de eficiência energética, mas existem maneiras melhores e mais consistentes de se atingir esse objetivo”. Bingo! 
 
Mesmo assim, e depois de longa e forte pressão junto ao governo anterior, em dezembro do ano passado foi aprovado um novo programa para o setor, agora conhecido por Rota 2030. Definindo condições de fabricação e importação de veículos, o novo programa estabeleceu um regime tributário especial para “estimular o desenvolvimento tecnológico da cadeia produtiva”. Difícil entender por que, para uma indústria que opera em escala mundial, com a acesso à toda tecnologia disponível e às fontes de financiamento que desejar, em todo o mundo, precisaria de socorro tributário para realizar, nada mais nada menos, estudos, desenvolvimento e trabalhos que são, na verdade, o próprio motivo de existência dessas empresas.
 
Segundo informações da Receita Federal, já considerando os R$ 7,2 bilhões deste ano e mais R$ 2,1 bilhões relativos ao programa Rota 2030, os benefícios fiscais repassados às montadoras, entre 2008 e 2019 chegam a R$ 41,2 bilhões! Dinheiro pra ninguém botar defeito. O Estadão, em editorial de 15/10/18 não deixou por menos: “o caso da indústria automotiva é notável. Desde que se instalaram no Brasil, nos anos 50, as montadoras de veículos recebem todo tipo de incentivo, sob o pretexto de que se trata de uma cadeia produtiva com enorme potencial de geração de empregos (2) e de dinamização econômica (grifos meus). Passado mais de meio século, contudo, essas indústrias ainda reivindicam privilégios tributários e proteção contra a concorrência internacional (3), como se fossem incapazes de se sustentarem e expandirem por suas próprias forças”.
 
Sempre foram significativos, também, os empréstimos feitos pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) às montadoras. Segundo relatório do banco, entre 2002 e 2018 foram concedidos R$ 42 bilhões em financiamentos para apenas 11 montadoras (FCA, MBB, CHN, Ford, VW, Renault, Scania, Man, GM, Hyundai e Toyota). Basicamente para desenvolvimento de novos modelos, melhoria da eficiência energética, modernização e expansão da capacidade produtiva, investimento em engenharia e tecnologias, investimentos ambientais, adequação da plantas, implementação de novos laboratórios para testes de motores e projetos sociais.
 
Em complemento, estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), publicada no Estadão de 19/11/18 (Relatório de Assistência Setorial: Custos e Benefícios da Proteção Tarifária no Brasil), concluiu que “a taxação das importações resultou na transferência de R$ 130 bilhões dos consumidores para as empresas dos setores produtivos beneficiados por essa tributação, somente no ano de 2015”. Conforme o estudo, tarifas sobre produtos importados que tem similaridade à produção nacional, possibilitam aos fabricantes nacionais cobrar mais caro pelos produtos aqui fabricados, gerando ganhos que, caso contrário, seriam impossíveis. Evidentemente que pagos pela população consumidora desses produtos. Esse indicador, desenvolvido pelo IPEA permite estimar os custos que determinada proteção tarifária gera para o País como um todo. E mais, o estudo mostra que o setor mais favorecido com essa política de aumento na taxação de produtos importados com similaridade nacional, tem sido o setor de produção de automóveis, caminhões e ônibus (grifos meus), numa demonstração inequívoca de que esse setor, possivelmente desde que se instalou no Brasil, desfruta de privilégios muito especiais.
 
Giovanna Rato, da Automotive Business, em seminário específico (“Seminário Lideranças do Setor Automotivo”), realizado dia 13/11/18, comentou a respeito de uma pesquisa realizada no mês anterior, junto a 605 profissionais em posição de comando, de empresas do setor automotivo (montadoras, fabricantes de peças e outros fornecedores da cadeia). Com coordenação técnica da MHD Consultoria Empresarial, as principais conclusões desse estudo (4) foram: “Liderança automotiva limita foco em resultados imediatos e mostra que profissionais no comando do setor no Brasil dão menos ênfase à inovação do que deveriam e pensam pouco no longo prazo” (grifos meus). Com respeito a esses resultados, comentou ainda a diretora executiva do Automotive Business, Paula Braga: “Se a liderança da indústria automotiva não conseguir levantar a cabeça e olhar adiante, estaremos fadados a viver preocupados em fechar o resultado no fim do mês, sem nenhum horizonte de entregar mais valor ou inovar” (grifos meus). E finalizou: “O estudo apurou ainda que os homens e mulheres na liderança da indústria automotiva não têm consciência do propósito da empresa em que atuam. Apenas 6% dos entrevistados souberam definir esse aspecto da organização. O porcentual é crítico (5). E Paula Braga, corretamente conclui: “para não cair na obsolescência só há um caminho: a inovação – e isso inclui a construção de novos padrões, espelhos e modelos. No Brasil, a indústria automotiva, uma das maiores propulsoras da economia do País, caminha a passos largos rumo à renovação técnica, mas avança em ritmo tímido quando se trata da transformação de seus gestores (grifos meus)”.
 
Não bastasse tudo isso, ainda recentemente, alguns dos principais dirigentes das empresas do setor, mais precisamente das montadoras de automóveis, veem à público para novos comentários. Vale destacar apenas dois deles: “É muito difícil prever o ano que vem sem ter um horizonte de política econômica” (grifos meus); “Não é fácil explicar sobre o Brasil (grifos meus), mas nosso acionista não vai desistir pois tem confiança no País”. Além disso são diversas as críticas contra possíveis propostas de maior abertura comercial, chegando ao ponto de se pedir prazo de 15 anos para que isso se concretize integralmente. Nunca é demais lembrar que a primeira montadora de automóveis a se instalar no Brasil data de 1925 (cuja produção se iniciou em 1930, fábrica da General Motors em São Caetano do Sul), isto é, há quase 100 anos!
 
Segundo noticiário dos principais jornais do País, ainda no mês passado, para voltar a ter lucro, a montadora líder de mercado nos últimos três anos no Brasil, propôs sacrifícios aos trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos, solicitou antecipação do crédito de ICMS junto ao Estado de S. Paulo e exigiu um conjunto de “colaborações” junto aos seus fornecedores. Providências desse tipo já haviam sido comentadas anteriormente quando a presidente global de uma companhia, ao dizer que “não faz sentido continuar a investir para perder dinheiro”, complementou dizendo que caso a empresa não volte a obter lucro em suas operações, além de cortar investimentos é possível, inclusive, “deixar a região”. Segundo o noticiário, o recado (ou chantagem?) foi dado pelo responsável das operações no Mercosul, diretamente aos funcionários brasileiros. 
 
É certo que a indústria automotiva é importante para o País, pois formada por 27 fabricantes de veículos e 446 fornecedores de auto partes, o setor, segundo dados da ANFAVEA, gera cerca de 500 mil empregos diretos e mais 800 mil empregos indiretos, posicionando o Brasil na 10ª colocação como produtor mundial e na 8ª como mercado. É sempre promissor a instalação de novas fábricas ou indústrias em território brasileiro, e se o Estado puder contribuir de alguma forma para atraí-las e darem seus primeiros “passos”, tanto melhor. Mas exigir que o Estado, a custo de toda a sociedade, se responsabilize pela manutenção de sua rentabilidade, seja através de empréstimos com juros altamente favoráveis, isenções tributários ou benefícios fiscais que ao longo do tempo vem se tornam permanentes, está fora de propósito em quaisquer circunstâncias, principalmente considerando a crise atual e as reais condições das contas públicas brasileiras do momento. E tudo isto quando tanto se defende “liberalismo econômico”! 
 
Não há dúvidas que o mundo passará por grandes transformações nos próximos anos, alterando não só o comportamento das pessoas, mas também as características dos mercados, com novos competidores e consumidores que, talvez, sejam mais usuários do que proprietários. E em todos os segmentos econômicos e de produção. Exigência por mais tecnologia e mais qualidade e compromissos com o meio ambiente e a governança também farão parte desse mundo novo. Motivos mais do que suficientes para que todo o setor produtivo, e não só a indústria automotiva, discuta, profunda e seriamente, como se reestruturar e adaptar-se à nova realidade. 
 
Mesmo que as incertezas atuais nos impeçam de entender tudo o que está ocorrendo, é imprescindível que sejam iniciadas discussões a respeito dos novos modelos de negócios, das novas formas de gestão e, principalmente, do novo tipo de profissional (6) a ser contratado (ou a ser formado). Profissional que, além da competência, acredite no mercado competitivo, deixe de recorrer ao governo sempre que estiver em dificuldade, notadamente neste momento de gravíssima crise nas contas públicas, e fuja das “amizades conflitantes” (quando não suspeitas), junto a executivos do governo. Profissional que reconheça e corrija seus próprios erros e não transfira a culpa de eventuais insucessos apenas aos outros e às circunstâncias. Inovação se faz com gente. Mas com gente preparada e em ambiente organizacional compatível, caso se queira, mais do que uma indústria 4.0, um País 4.0, um País em desenvolvimento. 
 
É imprescindível que todos, principalmente aqueles em posição de mando, tanto do setor público como do setor privado, compreendam o quanto é grandioso trabalhar para o sucesso – mais do que isso, para a sobrevivência - de seus subordinados, seus familiares, suas empresas e seus países. Entender os reais impactos de nossas ações junto à toda a sociedade, e não somente junto às nossas empresas, é essencial, pois ao final de tudo, de um jeito ou de outro, essas ações irão impactar – para o bem ou para o mal - a vida de milhões de pessoas.
 
(1) Diversos países, como Alemanha, França Japão e China já tem programas para redução de suas importações de petróleo que, como se sabe, é um produto fóssil e com sua existência limitada e comprometida no futuro. Daí, procurar alternativas e desenvolver tecnologias para mitigar os problemas oriundos é um desafio já colocado. Isso, sem dúvida, também irá pressionar o setor automotivo para que, da mesma forma, busque soluções tecnológicas que evitem a utilização desse tipo de combustível. O fim do motor a combustão parece estar próximo, principalmente com o advento do carro elétrico, este sim, gerador de grandes modificações no setor automotivo como um todo.
 
(2) Nunca é demais lembrar que as primeiras montadoras aqui instaladas, por um longo período e através de eficiente “lobby”, impediram a instalação de novas fábricas concorrentes aqui no Brasil. Depois da instalação das fábricas da GM, em São Caetano do Sul (1930) e São José dos Campos (1959), da Volkswagen, na Anchieta (1957) e da Ford, em São Bernardo do Campo (1958), somente em1976, isto é, 17 anos depois é que a Fiat conseguiu instalar sua fábrica em Betim (1976). Nova montadora, somente 21 anos depois, em 1997, com a fábrica da Honda de Sumaré.
 
(3) Apenas considerando os automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus, a produtividade do setor, em 1980, era de 8,2 veículos por empregado. Em 2000 a produtividade aumentou e chegou a 18 veículos por empregado, em 2010 foi de 28,8 e em 2018, em face da grave crise, caiu para 25,4 veículos por empregado, segundo o Anuário da Indústria Automobilística Brasileira elaborado pela ANFAVEA. Como se vê, a geração de empregos no setor é cada vez menor.
 
(4) Outros resultados da pesquisa: a) Maiores desafios da gestão: 40% indicaram o aumento da rentabilidade; 33% a busca pra elevar vendas; 32% a ampliação de engajamento dos colaboradores; e 29% o aumento da produtividade, a redução de custos e a formação de líderes e sucessores; b) Barreiras que dificultam superar os desafios citados: 83% a Instabilidade Política e Econômica; 35% a Escassez de Recursos; 33% a Falta de Profissionais bem preparados; 29% a Competição com concorrentes e 27% cultura organizacional muito rígida ou engessada; c) Questão de sobrevivência: para 88% dos entrevistados, é a Inovação: d) Sobre estrutura hierárquica: para 83% ela é imperfeita e não atende as novas exigências atuais.
 
(5) As empresas mais valiosas do mundo, como Apple, Google e Amazon, têm propósito claro e amplamente comunicado para toda a companhia. Joey Reiman, fundador da BrightHouse e autor do livro Propósito foi enfático: “Por que ele (propósito) engaja colaboradores, constrói marcas fortes e empresas poderosas. Empresas que têm clxareza sobre a sua razão de existir possuem maior potencial de gerar transformação. Marcas sem propósito fazem dinheiro, marcas com propósito fazem a diferença.” 
 
(6) No estudo “Automotive Brazil 2025”, elaborado por Paulo Cardamone, da Bright Consulting, foram elencados sete temas que, segundo ele, deverão fazer parte das políticas e estratégias empresariais: “evolução tecnológica, mudanças nos hábitos de consumo, configuração mutante do mercado com redução de produtos de entrada, tributação e pressão de preços, nível de utilização da indústria, regulação/legislação de emissões e segurança, e transformação da rede de distribuição”. Um agenda ‘robusta’ que exige foco, criatividade, competência e mudança de comportamento.
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