Brasil: da boleia do caminhão à nau dos insensatos*

Publicado em
31 de Maio de 2018
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Jamais a frase “em casa que não tem pão, todos gritam e ninguém tem razão” foi tão verdadeira, vindo a servir, da forma mais fiel possível, o que acontece hoje no Brasil.

A triste realidade brasileira é resultado de décadas de incompetência, ignorância e má-fé, vindo a piorar ainda mais nos últimos quinze anos, quando a demagogia, o populismo e a política do “nós e eles” foram intensa e irresponsavelmente praticadas.

Durantes os episódios destes últimos quinze dias, gravíssimos sob qualquer ponto de vista, muitos oportunistas saíram em defesa dos “caminhoneiros” pois estes estariam tomando atitudes com a coragem que, em algum momento, lhes teria faltado, inclusive à maioria do povo brasileiro. Muitos os classificaram como “heróis’ e chegaram até a dizer que eles estavam representando o povo brasileiro. Aliás, com tanta gente a favor, não entendo porque o povo brasileiro ainda tem tanto problema!

E o que se viu, como repercussão, foi um conjunto de críticas contundentes ao atual governo, à toda a classe política e à Petrobrás em particular. Quanto ao nosso governo e à nossa classe política, não há muito o que discutir: são “da pior espécie” possível, salvo as exceções de sempre.

Durante quase todo o período do movimento, invocando uma célebre frase constitucional, repetiu-se à exaustão que “todo poder emana do povo” e que, portanto, o povo teria que tomar “as rédeas” do destino da nação brasileira. Alguns, avançando um pouco mais, defendiam a intervenção militar como meio mais rápido e eficiente. O que tornava a compreensão, sobre a pauta de reivindicações, mais confusa ainda.   

Por outro lado, quando as entrevistas na mídia, inclusive na internet reproduziam as opiniões populares, muitos as criticavam com a argumentação de que o povo é muito ignorante. Aliás, é mais ou menos o que acontece quando pesquisas eleitorais apontam na dianteira, candidatos que não sejam do nosso agrado: o povo não sabe votar.

Por diversas vezes escrevi sobre um “tal de pragmatismo eleitoral” (“Pragmatismo e Eleições”, agosto de 2006, Jornal de Alphaville e “Pragmatismo Eleitoral e Marketing Político: Crimes contra o País”, em março de 2016, no portal Guia do TRC), para criticar o costume de grande parte da classe empresarial, e de quase todos os segmentos econômicos brasileiros, de financiar campanhas eleitorais e apoiar todos os candidatos de todos os partidos políticos ao mesmo tempo, independentemente de quaisquer coerências políticas. Era a forma de, ao não se saber ao certo, quem seria eleito, ficar ‘de bem’ com todos. Como disse, independentemente de suas ideologias, de seus programas partidários ou dos valores éticos e morais que eles defendem. É a prática de “acender uma vela para Deus e outra para os diabos”. Digo diabos no plural porque, infelizmente, eles são maioria.

Portanto, se dizem que “o governo e o os políticos são o reflexo do povo brasileiro, gostaria de propor uma pequena alteração: “o governo e os políticos são o reflexo do povo brasileiro e de sua classe dirigente” (vale à pena insistir: composta por políticos, empresários, intelectuais, artistas, escritores, representantes da imprensa, dos sindicatos, da igreja e etc.).

Também é sabido que os altos custos de uma eleição criam maiores e melhores possibilidades e condições a quem pode pagar por ela. A não ser que se obtenha, honestamente ou não, alguma forma de financiamento. E se há uma certa correlação entre poder econômico e poder político, é óbvio que quanto maior o poder econômico de uma pessoa ou de um grupo, maior o seu poder político.

Não é desconhecido que o Brasil tem alguns dos piores índices de concentração de renda de todo mundo que, além de “assustar”, também é responsável pela concentração do poder político e, consequentemente, pela forma como é composta nossa classe dirigente. “A ampliação da desigualdade não é compatível com uma sociedade democrática” escreveu o ex-presidente Fernando H. Cardoso, em seu livro “Crise e Reinvenção da Política no Brasil”. Importante relembrar que concentração de renda e de poder não é, sem dúvida, responsabilidade ou culpa do povo brasileiro.

O que quero aqui expressar, é que nossa situação é o resultado do comportamento de todos. Da classe dirigente e da classe de dirigidos. A classe dirigente pode ser dividida em dois grupos: a) quem, de direito, exerce a direção, seja ela no setor público ou privado (sindicatos, por exemplo, pois há muito a eleição de seus líderes deixou de ser decisão dos trabalhadores), e b) quem influencia e define, de fato, o que deverá ser feito e quem serão os dirigentes de direito. A classe de dirigidos, como fica óbvio, é a grande massa da população brasileira que, a ela, resta o poder do voto e das manifestações populares ‘mais ou menos’ organizadas. Quem está no exercício do poder, na maioria das vezes, além de se deixar corromper, realiza muito mal o seu papel, geralmente por incompetência, por não entenderem corretamente as aspirações populares e/ou acreditarem em ideologias impraticáveis. Quem influencia ou manipula, para que as escolhas de dirigentes (não só públicos) recaiam a quem lhes interessa, trabalha para solucionar, quase que única e exclusivamente, seus próprios interesses, em claro conluio com o que há de pior nos diversos segmentos da vida brasileira, política, empresarial, pública ou privada. Aliás como tem fartamente demonstrado a operação Lava Jato.

E se todos tem culpa, ninguém é culpado, já se disse em algum lugar e em algum momento. Mas, sem dúvida, no caso brasileiro, a maior parcela da culpa cabe à classe dirigente, posto que a maioria esmagadora da população – isto é, a classe dirigida - pouco influi nas decisões estratégicas e políticas do País. Por ignorância, desconhecimento, má-formação ou desinteresse, parcela significativa dessa população é facilmente manipulada e conduzida até, para buscar objetivos contrários às suas aspirações.

“Sem líderes críveis que desenhem o futuro do país no mundo e lutem por uma sociedade mais solidária, não há como recuperar a confiança nos políticos e nas instituições. Sem políticos não há como integrar a nação no Estado nem fazer com que ele funcione para atender às necessidades do povo”, escreveu Fernando H. Cardoso em seu livro aqui já citado. De fato, se a maioria da população não mais acredita que a triste situação brasileira poderá ser resolvida através das instituições constituídas e nem tampouco pela própria Democracia, começa-se a viver a anarquia.

E é um pouco disso que estamos vivendo. Em um País como o nosso, no qual há falta de emprego para 27,7 milhões de pessoas (conceito PNAD: 14 milhões de pessoas subutilizadas e mais 13,7 mihões de desempregados), com um Estado quebrado, quase falido, fazer reivindicações, por mais justas que possam ser, além da falta de solidariedade, é um grande desserviço, não interessa ao País e, muito menos à população brasileira. Começaram os caminhoneiros, passamos pelos metroviários de Belo Horizonte, agora são os petroleiros, e sabe-se lá quando tudo isso vai terminar.  

Esta crise está prejudicando toda a população brasileira que, já há algum tempo, não vive dignamente. Carência habitacional, péssimos serviços de saúde, educação e segurança, e salários pressionados para baixo, posto que a oferta de trabalho é muito menor do que a demanda, são consequências que afligem profundamente o “povo brasileiro”, os ‘dirigidos’. O Brasil encolheu, queira-se ou não. Mesmo considerando o crescimento de 1% do ano passado, nosso PIB, de 2013 à 2017, decresceu 5,5%. Segundo os Índices Consolidados do BCB, nossa renda-per-capita em 2017, equivalente a US$ 9.896, é 12,46% menor que a de 2010, quando foi de US$ 11.304. Diminuiu a quantidade de pão e todos começaram a gritar e, quem conseguir gritar mais forte e alto – e até com violência - procura resolver, mas somente, seus próprios problemas. O Brasil? Como sempre, fica para depois!

O governo, já com o “caixa está estourado”, e de joelhos, capitulou e transferiu, como sempre, e mais uma vez, todos os custos dessa aventura para a nação brasileira pagar. Reivindicar colocando “a faca no pescoço” do outro interlocutor, não tem nada de democrático e não é negociação. É imposição. O movimento paredista dos caminhoneiros, orientado por lideranças discutíveis e que, agora se sabe, nem sempre representavam os verdadeiros caminhoneiros, não só utilizavam pessoas “fora do setor” como tinham diversos outros objetivos, todos eles ocultos. E mesmo os objetivos mais legítimos, nem sempre eram convergentes com os reais interesses da categoria. Pior, via métodos truculentos, obtiveram um conjunto de benefícios muito acima de que se havia pedido inicialmente e que beneficiaram outros atores (a “desoneração da folha”, por exemplo, interessa a quem?).

Observe-se que, durante todo o movimento grevista, não houve qualquer cuidado com os possíveis efeitos colaterais que isso poderia causar ao País e à população mais pobre. Além de faltarem produtos nos supermercados, combustível, transporte coletivo, serviços essenciais tiveram que suspender suas atividades, tais como escolas, postos de saúde e hospitais. A maioria dos jornais de hoje estima perdas acumuladas que podem ultrapassar os R$ 75 bilhões. Mas o impacto na economia poderá ser muito maior, segundo a análise de diversos economistas. Perda entre 0,5% e 0,75% do PIB. Mais o medo e a apreensão que tomou conta de todos, pois não se sabe como isso poderá terminar. Entretanto, e “durma-se com um barulho desse”, 87% dos brasileiros apoiam a paralisação, segundo o Instituto Datafolha. Se bem que quase esse mesmo percentual, não concorda em querer pagar a conta. Incrível, não?

Aproveitaram-se, sem dúvida, de um governo fraco, incompetente, desarticulado e próximo do seu final, sem quaisquer condições de saber o que é melhor para o Brasil. Esse governo, chantageado, simplesmente cedeu. Zygmunt Bauman, em seu livro “Babel – Entre a Incerteza e a Esperança”, não poderia ter deixado mais claro: "um Estado que perdeu seu monopólio da força não dispõe da capacidade de decidir o que precisa ser feito, ele não tem como deixar de ser um mau condutor da vontade geral”. Com razão escreveu Alexandre Schwartsman no Estadão do último dia 30: “Concessões aos caminhonheiros são a essência do anticapitalismo nacional”. E complementou: “fraqueza política do governo permitiu que um grupo conseguisse chantagerar o País”. Não há dúvida.  

Se a realização contínua de déficits públicos, com aumentos significativos da dívida do governo, complica sobre-maneira a resolução da gravíssima crise econômica pela qual passa o País, a criação de novas despesas, para beneficiar grupos poderosos, gera muito mais incertezas e muita mais insegurança.

Sempre tive grande respeito pelos caminhoneiros, pois trabalho no setor desde 1988, e é difícil criticá-los, pois sem dúvida vivem uma vida sacrificada. Mas acho que foram manipulados. Artigo de ontem, publicado por mim no portal Guia do TRC, discorre sobre o assunto da real carência da logística e do transporte brasileiro. Realmente este setor, mal tratato e pouco considerado, inclusive por muitas das lideranças e empresários do setor, tem nos motoristas de caminhões próprios ou não, suas principais vítimas. Mas vale à pena outra vez ressaltar, igual à de milhões de brasileiros. Não há exclusividade nisso, principalmente nas atuais circunstâncias.

O conluio entre público e privado, patrocinado pelas classes dirigentes, parece ser a principal característica do Brasil atual e que, como disse Schwrtsman, aqui já citado, “é o reflexo de quem reclama dos privilégios alheios, mas se mobiliza como poucos para manter cada um dos seus”.

Como disse no início deste texto, talvez eu seja mais um gritando sem razão. Mas é minha opinião.

 

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