Artigo: Por que a “oferta aparente” torna impossível o frete justo?, por Geraldo Vianna*

Publicado em
30 de Junho de 2015
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Qual o preço justo de uma ação, ou de um automóvel usado, ou de um quilo de feijão? Numa visão absolutamente liberal, preço justo ou, no mínimo, adequado, é aquele que resulte da correlação oferta/demanda em cada momento, em cada lugar. Para isso existem, por exemplo, as bolsas de valores – que não por acaso são chamadas de templos do capitalismo – e uma miríade de leis de regulação do mercado de capitais, de defesa da concorrência e de proteção ao consumidor. A abundância e a escassez são circunstâncias que deprimem ou elevam os preços. Por isso mesmo, se alguém opera no sentido de falsificar um daqueles pólos (a oferta ou a demanda), sujeita-se às sanções previstas nas leis de defesa do mercado. Isso é tão grave quanto, no futebol, por a mão na bola de propósito, ou por negligência, imprudência ou imperícia. [Nenhuma referência, é claro, ao pênalti idiota que acabou nos desclassificando da Copa América, no último sábado...].


A partir desses conceitos, frete justo seria aquele que resultasse da correlação entre a oferta de meios de transporte e a demanda por transporte, num determinado mercado (assim entendido o tipo de produto que se quer deslocar, a partir de uma certa origem para um destino conhecido). Numa mesma cidade, num mesmo momento, podem existir vários mercados de transporte, porque o veículo que leva combustível não pode carregar soja, nem o graneleiro pode transportar veículos zero quilômetro e assim por diante, para mencionar apenas algumas das dezenas de especializações de transporte que exigem equipamentos específicos.

 

Desde que a NTC surgiu, em 1963, o setor tem lutado para fazer com que o Estado brasileiro entenda que não é possível deixar esta atividade sujeita unicamente às leis de mercado, entre outros motivos, por conta da impossibilidade de se definir com clareza a oferta de transporte em cada mercado, em decorrência de um fenômeno que é da própria essência do transporte rodoviário de cargas (TRC), qual seja a possibilidade deterceirização (subcontratações ou  redespachos), o que significa, na prática, que cada operador de transporte comparece ao mercado ofertando uma capacidade indefinida de transporte.

 

Esquematicamente, se houver uma concorrência para a realização de um serviço que exige, digamos, 100 caminhões, salvo restrições impostas pelo embarcador, uma empresa de transporte que detenha esta frota poderá concorrer com inúmeras outras, que tenham ou não alguma frota, mas que contam com a possibilidade de subcontratar tantos caminhões quantos sejam necessários para suprir suas deficiências em termos de capacidade de transporte. Ou, então, dezenas de empresas sem frota alguma (os malfadados e sempre mal falados “agenciadores de carga”) disputarão entre si para ver quem terá o direito de ir ao mercado subcontratar os mesmos 100 caminhões, pelo preço miserável resultante desse embate surreal, miséria esta que será repassada para os transportadores autônomos ou para as microempresas que operam no mercado secundário.

 

Este fenômeno que se repete milhares de vezes num único dia, em todo o país (principalmente nas situações em que não se exige equipamentos específicos), significa que há uma “frota fantasma”, a gerar uma oferta gigantesca de transporte que, todavia, não existe: ela é  aparente, ectoplasmática. É o falso milagre da “multiplicação dos caminhões”, que mantém os fretes permanentemente aviltados, mesmo em face de demandas superaquecidas.

 

Se juntarmos a isso, a oferta artificial decorrente da prática de excesso de peso e dos excessos de jornada, que multiplicam a capacidade de carga da frota existente, teremos uma segunda “bolha rodoviária” – além daquela a que já me referi em artigo anterior – a evidenciar que é inadiável o estabelecimento de regras claras a impedir essas disfunções que fazem com que, nesse jogo, os operadores do TRC comecem sempre perdendo.

 

Além da introdução de barreiras de ingresso, como capital e/ou frota mínima, idade máxima de frota para determinadas operações, seguros obrigatórios etc., e penas severas, que cheguem até à perda da autorização para exercer a atividade, em casos de infrações muito graves ou reiteradas, penso que deveremos começar a discutir alguma forma de limitação à prática da terceirização, que impeça, ou ao menos reduza sensivelmente, o fenômeno da oferta aparente de transporte e, assim, torne possível ao transportador ter alguma chance de êxito no jogo do mercado. Até mesmo o estabelecimento de uma tabela de preços mínimos, mesmo que fosse possível, não seria tão eficiente para garantir uma remuneração justaao transportador (no sentido que apontei no início) quanto o disciplinamento efetivo da oferta de transporte. Uma relação 1 x 1 entre frota terceirizada e frota própria talvez fosse suficiente para garantir um mercado primário menos hostil às empresas de transporte, cujos efeitos acabam contaminando inevitavelmente omercado secundário e aviltando o frete pago aos transportadores subcontratados. Mas é possível discutir qualquer outra relação desse tipo, na certeza de que qualquer limite será melhor do que a completa irracionalidade hoje presente em ambos os mercados. [Entenda-se que aqui introduzo um conceito novo, ou pelo menos muito pouco discutido entre nós, ao denominar “mercado primário” o que se estabelece entre os embarcadores ou donos das cargas e os transportadores contratados (geralmente ETCs), e “mercado secundário” o que se constrói entre estes e os transportadores subcontratados, quer sejam TACs, CTCs ou ETCs].

 

Seja como for, a eficácia de regras novas – assim como de muitas das já existentes, que têm sido tratadas como letra morta – depende fundamentalmente da capacidade de fiscalização do Estado. E esta somente será efetiva se e quando puder ser feita eletrônica e automaticamente, com o mínimo de interferência humana, razão pela qual deposito as minhas melhores esperanças de um novo tempo para o TRC no recadastramento que a ANTT deverá lançar em breve, trazendo como grande inovação o “tagueamento” de todos os veículos automotores de carga. Isso viabilizará e apressará, entre outras inovações, o uso generalizado do Conhecimento de Transporte Eletrônico (CTe) e do Manifesto de Carga Eletrônico (MCe). Dentro de no máximo 2 anos tudo o que antes parecia impossível poderá se transformar em realidade corriqueira.

 

A boa notícia é que aquela Agência reguladora não só detém a competência legal, como os meios para realizar esta grande mudança e, principalmente, a vontade política de enfrentar a efetiva regulação do TRC nacional, superando o imobilismo clássico do Estado brasileiro nesta área, que remonta aos tempos do regime militar, quando se construiu a doutrina de que o TRC deveria ser mantido à margem de qualquer regulamentação, para o bem do país e da economia brasileira.

 

As incríveis distorções da nossa matriz de transportes e as centenas de milhares de pessoas que morreram desde então em acidentes rodoviários que não precisavam ter acontecido clamam pela revisão e reversão daquela estúpida teoria. Antes tarde que nunca.

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

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