Logística, agenda mínima de Estado e Democracia - Parte I*

Publicado em
09 de Maio de 2019
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Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes*
 
Recentemente participei de um fórum realizado pela ESALQ-Log (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP) no campus universitário de Piracicaba, para discutir a respeito da logística brasileira. O tema (“Políticas logísticas para uma agenda mínima de Estado”) sugerido implicava, entre outras coisas, tecer comentários sobre a logística brasileira do momento e elencar as principais medidas que precisariam ser adotadas caso se quisesse definir políticas de médio e longo prazos.
 
Evidente que ao descrever, mesmo que suscintamente, os principais entraves que fazem com que o Brasil tenha altos custos operacionais e baixa eficiência em suas atividades logísticas, me vi obrigado a citar a carente estrutura disponível, incluindo-se, inevitavelmente, a infraestrutura de transportes. Consequentemente, críticas aos diversos governos que “deixaram” a logística de lado e a trataram com incompetência e sem os investimentos mínimos necessários (mesmo os de manutenção), também foram mencionadas.    
 
Comentei que era preciso reconhecer, de forma concreta e ‘sem medo’, que o Brasil tem muitos problemas nesse setor e que, mesmo considerando a ‘bem-vinda’ e crescente participação do setor privado – notadamente agora que todos estão a favor de um ‘certo’ liberalismo econômico (1), a participação do setor público é fundamental. Essencial, fiz questão de frisar (2).
 
E para ilustrar citei alguns exemplos ruins de nossa realidade que, infelizmente, tiveram suas sementes plantadas em face da falta de uma visão mais integrada das atividades logísticas, pelos principais órgãos governamentais que tratam do assunto: falta de planejamento, excesso de burocracia, ingerência dos diversos órgãos que tratam do mesmo assunto, baixos índices de investimento, discutíveis qualidade e prioridade nos poucos projetos implantados, falta de legislação, inclusive tributária, e falta de marcos regulatórios específicos.
 
Os resultados são por demais conhecidos por todos que conhecem ou trabalham no setor: custos sempre com tendências de alta, planejamento fragmentado e descoordenação das políticas públicas voltadas ao setor, pouca ou quase nenhuma importância às projeções e perspectivas dos demais setores produtivos, falta de priorização, falta de clareza nos processos regulatórios (inclui-se, aqui, entre outros, a falta de regulamentação e arcabouço legal à figura do Operador Logístico e do Transporte Multimodal), desestímulo ao investimento privado, manutenção de matriz de transportes preponderantemente rodoviária, carência de mão de obra especializada e baixa produtividade.   
 
Porém, o que me levou a escrever este artigo, foi o fato de que na hora dos debates, um dos expositores, de origem estrangeira, disse que nós, brasileiros, reclamamos muito e fazemos, de forma demasiada, críticas ao governo quando, na verdade, muito poderíamos fazer como empresários e, até mesmo, cidadãos. Será que reclamamos demais de nossos governos?
 
Mais recentemente, em outro fórum de debates, agora realizado pela Departamento de Infraestrutura da FIESP, o consultor Frederico Bussinger (3), um dos grandes estudiosos brasileiros do setor, fez críticas contundentes com relação à situação da logística brasileira e citou um termo, criado por ele mesmo, que achei interessante: “reducionismo conceitual”, isto é, não entender que a logística é muito mais ampla e abrangente do que simplesmente a elaboração de planos viários. Eu também tenho chamado a atenção para isso desde o início desta década quando comentei que a maioria dos profissionais do setor apenas imagina a logística como instrumento de diminuição de custos, e nunca como meio para o desenvolvimento, de empresas e países. A logística não pode ter um “fim em si mesma”, pois ela é instrumento essencial para que se chegue ao desenvolvimento da economia e da sociedade. Esse erro de entendimento eu chamei de falta de “cultura logística” (4). A meu modo de ver, tanto um como o outro, o significado pode ser entendido como falta de conhecimento. 
 
Não tenho dúvidas que cada um de nós – pessoa física ou jurídica - pode ajudar para que o País saia do “buraco” em que se meteu e retome o caminho do desenvolvimento. Mas é evidente que isso, sem a participação do Estado, será impossível. Sem dúvida, o “reducionismo conceitual” de Fred Bussinger, além da logística, pode ser aplicado em muitos outros setores das atividades humanas.
 
Acredito que investir na infraestrutura brasileira é fundamental e que a participação do setor privado é imprescindível (defendi isso em artigo publicado no Guia do TRC em 17.08.2018). Mas volto a insistir: “É fundamental, neste momento, relembrar que na efetivação de propostas que levarão o Brasil ao liberalismo econômico do século XXI, não mais caberão simples argumentações que opõem, de um lado o dirigismo estatal extremo e de outro a ampla e irrestrita liberdade econômica. Será exigido, isso sim, que se trabalhe mais com a razão e uma visão clara de progresso, a ser obtido, este último, através de amplos debates, muita negociação e de implantação dos processos reformistas necessários. É importante que se acabe com a discussão simplória e falsa, na qual se colocam em campos totalmente excludentes e opostos, o Estado brasileiro sempre considerado como corrupto e ineficiente, diante de um mercado virtuoso e eficiente” (5). Alguém já disse em algum momento que “tão ruim como o monopólio estatal é o monopólio privado”.
 
A crise atual não tem precedente na história brasileira e “sair dela” não será fácil e, tampouco se dará em um futuro breve, como pode ser constatado por diversos indicadores econômicos e sociais. Vale à pena citar algumas: 28,3 milhões de pessoas subutilizadas (6), das quais 13,4 milhões estão desempregadas (12,7%), aumento da violência (7), baixa qualidade do ensino (8), serviço público de baixíssima qualidade, principalmente nas áreas de segurança, educação e saúde, altíssimo e perigoso nível da dívida pública e baixa produtividade (9). Até aumento no índice de mortalidade infantil tem piorado, pois como informa o Ministério da Saúde, na faixa de crianças de um mês a quatro anos o número de óbitos aumentou 11% entre 2015 e 2016. Ainda segundo o próprio Ministério, uma das principais causas é o corte orçamentário. Motivos, sem dúvida, para muitas reclamações! 
 
Ainda sem previsão de solução no curto prazo, o desequilíbrio das contas públicas e o aumento da dívida do governo aparecem como extraordinários obstáculos a serem superados e com graus de dificuldades cada vez maiores (10). Adicione-se o aumento da instabilidade no cenário externo e o ambiente ficará ainda mais complicado, gerando incertezas e muita insegurança.
 
1) Escreveu o prêmio Nobel de Economia de 2001, Joseph E. Stiglitz, na revista The Economist, dia 03.05.19: “Após 40 anos de fundamentalismo de mercado, a América e alguns dos países europeus com estilos de governo semelhantes, tem falhado com a grande maioria de seus cidadãos. E, neste momento, apenas um novo contrato social – garantindo saúde, educação, aposentadoria, habitação e trabalho com salário decente – poderá salvar o capitalismo e a democracia liberal”. Continua Stiglitz: “aqueles que têm estudado os processos de distribuição de rendas já constataram que nos países mais avançados, a economia de mercado tem falhado com grandes parcelas da sociedade. E em nenhum lugar isto é mais verdadeiro do que nos Estados Unidos”. E finaliza Stiglitz: “Muitos países europeus procuraram imitar a América, particularmente o Reino Unido, agora estão sofrendo as consequências políticas e sociais semelhantes... Após a segunda guerra mundial, em muitos aspectos, outros países europeus superaram os EUA na criação de oportunidades para os seus cidadãos, através de uma variedade de condições, criando o estado de bem-estar moderno, como forma de fornecer a proteção social e perseguir importantes investimentos nas áreas onde o mercado por si só é insuficiente”.
 
2) Há um grande equívoco quando se acredita em um “mercado perfeito”. Esse pensamento, difundido junto à toda a sociedade, por economistas, empresários e jornalistas considerados “modernos”, é uma tentativa de colocar o Estado (e o Governo do momento) como único responsável por tudo de ‘ruim’ que acontece. Não há dúvida, como demonstra a história mundial, que o ‘liberalismo puro’ é um erro, pois ele não consegue resolver todos os problemas da economia, muito menos da sociedade. O Estado precisa existir, limitado às suas funções essenciais, mas regulando e controlando as atividades econômicas e intervindo quando necessário, sempre com vistas ao desenvolvimento e à melhoria de vida de toda a população;
 
3) Frederico Bussinger, da Katalysis Consultoria, no debate promovido pela FIESP dia 30 pp: “O Planejamento da Infraestrutura de Logística e Transportes no Brasil”; 
 
4) “Cultura Logística”, artigo publicado pela revista Mundo Logística (revista nº 37 de Novembro/Dezembro de 2013) e mais tarde republicado – Outubro de 2015, na revista nº 12 do CIST (Clube Internacional de Seguro em Transporte) e no site do Guia do TRC;
 
5) “Sem radicalismos, agora é fundamental defender a Democracia” foi o artigo publicado por mim no Guia do TRC em 26.10.2018;
 
6) Segundo dados da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Continua, o número de pessoas subutilizadas, que inclui pessoas desempregadas (13,4 milhões), mais as pessoas subocupadas e aquelas que chegaram ao desalento (em face das dificuldades não mais procuram empregos), chegou a 28,3 milhões no primeiro trimestre de 2019;
 
7) Estatísticas apresentadas no documento Atlas da Violência 2017, elaborado pelo IPEA e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), dão conta de que, no Brasil, mata-se mais do que em muitas guerras que, de forma assustadora, vimos estampadas no noticiário internacional. A Guerra entre Israel e Palestina, alcançou o número de 66 mortes por dia. No Brasil, com aproximadamente 56.000 pessoas mortas anualmente pela violência, chegamos ao triste número de 154 mortes por dia! 28,9 mortes por 100.000 habitantes. Segundo a ONU, acima de 10 mortes por 100 mil habitantes, caracteriza-se “violência epidêmica”. No trânsito também estamos em péssimas condições. Com aproximadamente 45.000 mortes por ano, o Brasil está entre os 10 países que mais tem mortes por acidentes de trânsito;  
 
8) Taxa de alfabetização (adultos acima dos 15 anos) do Brasil: em 2011, 90,0% (84ª posição dentre os 187 países listados), em 2012, 91,3% de alfabetização Brasil ocupa a 134ª posição dentre 217 nações de todo o mundo (The World Factbook, publicação anual da CIA / EUA). Pesquisa do PNAD/IBGE de 2017 mostra que a taxa de analfabetismo brasileira (população com 15 anos ou mais que não sabem ler ou escrever) é de 7%, equivalentes a 11,5 milhões de pessoas. Além do que, relativo à população com idade acima dos 25 anos, não tinham instrução, 7,2% e apenas 33,8% tinham o ensino fundamental incompleto. Em termos práticos, segundo o relatório do PNAD, 41% da população adulta brasileira é analfabeta funcional;
 
Dos 65 países do ranking do PISA de 2015, o Brasil ficou no lugar de número 57. Média das notas obtidas pelos alunos brasileiros em 2015: Leitura, 407, Matemática, 377 e Ciência, 401. Média das notas obtidas pelos alunos dos países membros da OCDE: Leitura, 493, Matemática, 490 e ciência, 493. Como se vê, estamos bastante distantes. Relatório do Banco Mundial de fevereiro deste ano estima que o Brasil demore 260 anos para alcançar o nível de leitura dos países desenvolvidos. O Brasil está entre os dez piores países;
 
Exames do ENEM: Entre 2014 e 2013 média geral caiu em 1,1%. Em Matemática a queda foi de 7,3% e em Redação, 9,7%. Além do que, há que se considerar que 8,5% dos participantes obtiveram nota ZERO na Redação. Dentre 6,2 milhões de participantes, 55,7% estariam teoricamente reprovados, posto que obtiveram apenas nota 500, quando o máximo é 1.000;
 
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que avalia recém-formado, tem índice de reprovação acima dos 80%, se analisamos as médias obtidas entre 2011 e 2015. 
 
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), em exames de avaliação, reprova quase 55% de seus profissionais e com três informações preocupantes: (i) “O Exame do Cremesp de 2012 demonstra que há deficiências na formação dos estudantes em campos essenciais do conhecimento médico”; (ii) “Erros em questões de conhecimentos básicos em Medicina mostram graves deficiências na formação acadêmica de algumas escolas médias”, disse o ex-presidente do Conselho, Dr. Renato Azevedo Jr.; (iii) “Esse resultado (2014) demonstra a má qualidade do ensino médico no País”, comentou o presente do Cremesp, Dr. Bráulio Luna Filho. E emenda: “além de representar um risco para os pacientes assistidos”;
 
9) Dados da “Conference Board”, compilados pelo pesquisador Fernando Veloso, do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, referente ao ano de 2015, indicam que o trabalhador brasileiro era capaz de produzir o equivalente a US$ 29.583, enquanto o coreano produzia US$ 71.287 e o americano US$ 118.826. Ou seja, o brasileiro produz 4 vezes menos que o americano e 2,4 vezes menos que o coreano. A relação do índice de produtividade entre brasileiros e americanos é a pior desde 1950;
 
10) Enquanto os resultados primários e nominais continuam negativos (nos últimos 12 meses, finalizados em março deste ano, R$ 113,6 bilhões e R$ 483,8 bilhões, respectivamente), a dívida bruta do Governo Federal, de acordo com os critérios do BCB, no mesmo período, chegou a R$ 5,41 trilhões, cerca de 78,4% do PIB. O critério de cálculo do FMI, diferentemente, também inclui os papéis do Tesouro em poder do Banco Central e, portanto, alcançando valores maiores: cerca de 88% do PIB. Para que se tenha uma ideia do tamanho dessa dívida, e segundo do FMI, os países emergentes ou com renda semelhante ao Brasil, em 2017, obtiveram, na média, uma Dívida Bruta equivalente a 49% do PIB. 
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