A vida de todas as pessoas interessa a todos*

Publicado em
27 de Novembro de 2020
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Eu tenho utilizado este espaço para escrever, quase que de forma rotineira, artigos sobre logística, economia e política. Como já disse uma vez, são assuntos que me interessam e, acredito, tem importância na vida do cidadão. Ouso, portanto, comentar o que me parece relevante, indicar alternativas possíveis e, quem sabe, estimular a reflexão de quem os lê.
 
Diante disso eu não poderia deixar de comentar, mesmo que preliminarmente e sem ser especialista no assunto, a morte do senhor João Alberto Freitas. Um homem negro que, por mais que tivesse cometido um delito, deveria ter sido levado à delegacia para prestar esclarecimentos, e não assassinado violentamente (1). Sem dúvida, vítima de racismo, em cujo conteúdo estão o preconceito e a discriminação racial, enraizados neste Brasil! Todo o meu lamento e minha solidariedade à família do João.
 
Acredito que a busca de uma solução para qualquer problema, exige, antes de mais nada, a realização de um diagnóstico que reflita, correta e honestamente, a realidade que se apresenta. Receitas são eficazes quando se sabe a doença. Fora disso é “tentativa e erro”. O falecido jornalista Paulo Francis dizia que a “esperança de adulto se inicia a partir do momento em que ele conhece a realidade”. Pois é, a esperança de adulto...
 
Mas ao ler os jornais, além de muitos outros menos notáveis, surgem as figuras de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, respectivamente presidente e vice-presidente deste País, para dizerem que não há racismo no Brasil, em demonstração inequívoca de um negacionismo que só acontece por ignorância, má-fé ou uma estratégia de comunicação cuja finalidade não entendo. Bolsonaro pode ter sido levado a esse entendimento pelos três motivos, mas não cabe à Mourão qualquer pronunciamento motivado pela ignorância, considerando o mais alto posto alcançado por ele no Exército brasileiro.
 
O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, homem negro, não só nega o racismo como acredita que a escravidão foi boa (para quem?) e que “não existe racismo estrutural no País”. Como escreveu Eliane Cantanhêde (Estadão de 22.11.20), essa afirmação, “partindo de brancos já é inadmissível. De um negro, é imoral”. 
 
Ignorar ou ‘menosprezar’ a existência do racismo, assim como da violência, da corrupção, da pandemia ou das queimadas na Amazônia, não ajudam em nada, muito pelo contrário, complicam ainda mais o que já está ruim, pois se inexiste o problema não há porque buscar solução (2). Tem razão a jornalista da GloboNews, Aline Midlej, quando em seu Twitter do último dia 22, ao comentar o assunto afirmou que “falas como essa” do Mourão é que alimentam o racismo e faz com que ele, todos os dias, continue matando. 
 
Vale à pena lembrar que esse acontecimento não é único e, sim, uma característica da vida nacional (3). O Atlas da Violência 2020 tem demonstrado claro, através de suas pesquisas, que as mortes das pessoas negras são muito maiores do que as pessoas brancas. Os dados referente ao ano de 2018 apontam que 75,7% das vítimas por homicídios no Brasil, são de pessoas pretas e pardas. E pior, no período analisado, 2008 a 2018, enquanto a taxa de homicídio de pessoas não classificadas como negras diminuiu 13%, a de pessoas classificadas como negras aumentou 12%. Já os dados do IBGE (Relatório sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, publicado em novembro de 2020), dão conta de que a taxa de homicídios por cem mil habitantes, no Brasil, das pessoas pretas ou pardas, saiu de 37,2 em 2012 para 43,4 em 2017, enquanto para as pessoas brancas essa taxa variou de 15,3 para 16,0 no mesmo período. Já para a faixa etária entre 15 a 29 anos, enquanto morreram em 2017, para cada 100 mil habitantes, 98,5 pessoas pardas ou pretas, as mortes de brancos alcançavam 34,0.
 
As mesmas diferenças – sempre em desfavor dos mais pobres, e entre estes, os de cor negra ou parda - ocorrem quando se analisa a educação (4), atendimento à saúde, prisão sem motivo e correspondente falta de assistência jurídica, ou a desigualdade no processo de distribuição de renda. Não há dúvidas que racismo, violência e alijamento do progresso sempre acompanhou a grande maioria da população brasileira, por toda a sua história, na qual os pobres e negros sempre foram as grandes vítimas. Aliás, reconhecido pelo próprio IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas nos diversos estudos e pesquisas realizados (5). 
 
Como já comentado, a elaboração de políticas públicas exige a correta elaboração de diagnóstico, o mesmo valendo quando se quer buscar a equidade racial. E neste caso em particular, é imprescindível entender o racismo como um sistema de opressão sobre os mais pobres, sobre as minorias e, notadamente, sobre a população negra que, de forma estrutural, coloca essa parte da população brasileira sempre em posições inferiores.
 
Isso nada tem de democrático! Em seu Art. 3º a Constituição Brasileira descreve os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária (grifos meus); II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (grifos meus); IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (grifos meus).
 
Atualmente já se fala em “Capitalismo Consciente”, a nova forma que concilia obtenção de lucros e, simultaneamente, colaboração com as igualdades de gênero, raça, cor etc., pois a todos parece injusto que mais de 80% da riqueza mundial gerada seja apropriada por apenas 1% das pessoas. De acordo com os defensores do Capitalismo Consciente, “os negócios são bons quando criam valores para todos, éticos porque baseados na troca voluntária, nobres porque elevam a existência, heroicos porque tiram as pessoas da pobreza e promovem a prosperidade” (6). Também muito se comenta sobre as qualidades das empresas que praticam o ESG (Meio-Ambiente, Social e Governança), isto é, empresas que respeitam e trabalham na proteção do meio ambiente, do ambiente social e da governança corporativa mais inclusiva. Acredito que o combate ao racismo e à violência, e de forma explícita, também deveriam fazer parte dessas providências (7).
 
Portanto, se está claro que este é o momento exato para executivos e empresários entenderem que, além dos interesses de seus acionistas, há os interesses de seus clientes, funcionários, fornecedores, vizinhos, governos, sociedade etc., também é essencial o combate à desigualdade, à violência e ao racismo. Respeitando a ética, a moral, as pessoas, a diversidade, a sociedade, a natureza e as leis, todos os seres humanos devem ser tratados de forma igual. A cultura desses valores, aliada a processos de treinamento, auditoria, controle e compliance, reforçará a conscientização de que todos somos responsáveis e que a solução dos problemas maiores da sociedade precisa da contribuição de cada um de nós, pessoas físicas ou jurídicas. 
 
O papel a ser desempenhado por cada um de nós, consequentemente, deve ser mais abrangente, concreto e efetivo do que o atual, tanto no reconhecimento (realidade) como na aceitação desses valores. Tragédias com características sistêmicas como essas que vimos assistindo, em escalas e frequências cada vez maiores, precisam de uma postura mais firme de toda a sociedade e em todo o mundo. As empresas e as associações de classe precisam se pronunciar veementemente a respeito e tomarem partido. Urge uma resposta sistemática e institucional, de tal forma que o tema faça parte da gestão empresarial, não como moda ou algo que venha para resolver um problema circunstancial. Não se trata apenas de punição dos responsáveis (8), necessária sem dúvida, mas de uma nova postura, na qual é preciso ficar claro que “a vida de todas as pessoas interessa a todos”.
 
(1) Os primeiros laudos periciais e as imagens divulgadas pela imprensa demonstram que o caso foi de extrema violência. João Alberto Freitas, durante quase quatro minutos, e diante de 15 testemunhas, imediatamente após ser espancado de forma criminosa, foi asfixiado;
 
(2) José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, tem uma conclusão clara e objetiva: “negação por Bolsonaro e Mourão, dificulta qualquer reivindicação, porque não se reivindica o que não existe”;
 
(3) A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, ao manifestar veemente repúdio ao crime, declarou que essa escalada da violência vem ocorrendo já há algum tempo, sem quaisquer providências das autoridades públicas: “Esta comissão vem alertando a sociedade para a escalada da violência contra a juventude negra e pobre, assim como para o racismo em empresas que lidam diretamente com o público – como supermercados, lojas, shoppings centers -, em eventos recorrentes que vão da humilhação verbal à tortura. Mas o ‘racismo à brasileira” parece seguir o seu caminho, impávido, degradando a sociedade como um todo e cada um de nós como indivíduos” (Folha de São Paulo, 22/11/2020);
 
(4) Levantamento feito pela Folha mostra que o desequilíbrio é registrado mesmo nos distritos onde há maior número de estudantes pretos e pardos, como o Itaim Paulista (zona leste da capital). Lá, crianças e jovens negros são 49% dos estudantes, mas apenas 24% dos matriculados em instituições particulares. Já em pontos mais ricos da cidade, o abismo é ainda mais profundo. Em Pinheiros (zona oeste), há 11,9% de estudantes negros no geral, e apenas 2,5% nos colégios privados. Os dados compilados do Censo Escolar de 2019 tiveram excluídos estabelecimentos privados conveniados ao governo. Nesse recorte, 35,7% dos estudantes da cidade são negros. Os números mostram que não são apenas obstáculos geográficos que reduzem a presença de negros em escolas privadas. A cor da pele e a renda segregam estudantes; 
 
(5) Introdução do trabalho realizado pelo IBGE ao publicar o último relatório sobre Desigualdades: “O combate às desigualdades sociais no Brasil tem sido objeto de estudiosos e formuladores de políticas públicas envolvidos no diagnóstico e na execução de medidas para sua redução. Entre as múltiplas formas de manifestação dessas desigualdades, a por cor ou raça ocupa espaço central nesse debate, pois envolve, em sua determinação, aspectos que estão relacionados às características do processo de desenvolvimento brasileiro, cuja dinâmica produziu importantes clivagens ao longo da história do País (grifos meus). Como consequência, a inclusão parcial das populações de cor ou raça preta, parda ou indígena no referido processo traduziu-se em maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social, como demonstram diferentes indicadores sociais que vêm sendo divulgados continuamente pelo IBGE por meio de seus estudos e pesquisas (grifos meus);
 
(6) “Empresas que curam”, livro de Raj Sisodia, um dos fundadores do movimento Capitalismo Consciente: “Estamos aqui para cuidar uns dos outros e as empresas são a forma de se fazer isso em larga escala”. “Se não fizermos parte da cura, com certeza seremos parte da dor”. Este assunto foi tratado por Hugo Bethlen (CCBrasil) no webinar da FIESP em 24.09.20;
 
Para advogado José Gabriel Navarro, especialista em relações de trabalho e desigualdades, “casos como o do Carrefour em Porto Alegre provam que iniciativa privada deve debater preconceito racial abertamente e fazer mudanças estruturais”. Completa Navarro: “Empresas têm que reconhecer e combater o racismo”. Entrevista dada pelo advogado Daniel Bento Teixeira, diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), ONG sediada em São Paulo e dedicada a combater o racismo em empresas e instituições públicas. E publicada por Nego Júnior da Deutsche Welle Brasil: “Nós temos instituições que ainda não se adequaram a um novo tempo de promoção da equidade racial, de combate efetivo e diário ao racismo. É preciso que esse tema deixe de ser tabu de uma vez por todas nas empresas. É necessário que, antes de mais nada, haja o diálogo sobre o tema de forma recorrente, seja nas escolas, nos meios de comunicação, e nas empresas e outras instituições onde as pessoas trabalham atendendo clientes e cidadãos. Esse é o primeiro legado. O segundo, além do diálogo, são medidas de equidade racial ligadas a toda a estrutura de uma empresa, uma cultura organizacional voltada para a equidade e a valorização da diversidade. Isso precisa ser algo contínuo, senão a gente vai estar sempre no território da denúncia, do caso já acontecido. É necessária uma ação anterior, educativa, sobre relações raciais no Brasil”.
 
(7) Para a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Amanda Pimentel, se a ação for individualizada para a conduta dos agressores, sem haver uma discussão ampla sobre a preparação dos profissionais que trabalham na área de segurança, esse tipo de situação continuará a se repetir frequentemente. Isso passa, por exemplo, por estereótipos racistas que interpretam como suspeitas a partir da cor da pele, de roupas e do território em que vive. “Todas essas características estigmatizam apenas uma parcela da população, em geral negra e pobre.”
 
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