Não há saída fora da Política e da Democracia

Publicado em
15 de Agosto de 2019
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Não há qualquer dúvida quanto a quantidade e ao tamanho das dificuldades encontradas pelo Brasil para sair de sua maior crise, considerando que suas dimensões são gigantescas e porque ela não é apenas econômica, social, ou política. É uma crise generalizada e que se encontra em quase todas as esferas de poder, em todos os poderes públicos, abrange o setor privado e atinge cruelmente a maioria da população brasileira, principalmente, e como sempre, as camadas mais pobres.
 
Ainda recentemente escrevi dois artigos, publicados aqui mesmo no Guia do TRC, comentando que o desemprego e a desigualdade precisavam ser combatidas urgentemente (“Na atual situação do Brasil, muitas providências são necessárias. Mas o combate ao desemprego, além de essencial, é medida de sobrevivência”, dia 21/05 e “Há que se trabalhar mais celeremente para se combater o desemprego e a desigualdade”, no dia 26/07).
 
E nos últimos quatro anos, pelo menos, tenho expressado a opinião de que o Brasil já chegou ao “caos”, pois além da miséria (1), do desemprego e da desigualdade, o desrespeito, a desordem e a violência tem alcançado níveis além do que se poderia permitir a uma nação minimamente civilizada. Ou não é um verdadeiro caos ainda termos, em pleno século XXI, cerca de 12 milhões de analfabetos e mais de 100 milhões de brasileiros vivendo sem sistemas de captação de esgoto? Que nome se dá quando um País, mesmo tendo a terceira maior população carcerária do mundo ainda permite que se matem mais de 65 mil pessoas anualmente, por armas de fogo ou violentamente? Como nomear a situação do trânsito em um País que produz, anualmente, mais de 45 mil mortes? E o que dizer a respeito de um País que tem mais de um terço de seu Congresso envolvido em problemas com a justiça e com a maioria de seus partidos políticos acusados de corrupção? Exemplos de “caos” há diversos, e dos mais variados tipos.
 
Evidentemente que tudo isso não é o resultado de um ou dois governos. São vários anos de descaso, de irresponsabilidade e de incompetência. Talvez os últimos governos tenham contribuído mais do que outros, mas incapacidade e má fé são características que tem acompanhado a maioria dos governos brasileiros desde a proclamação da República.
 
Os últimos governos talvez tenham “aprimorado”, muito mais do que os anteriores, a arte de desviar recursos públicos e isso pode ter levado a maioria da sociedade brasileira a descrer da Política e da própria Democracia. Mas nesse tema, e para que se faça justiça, os políticos não estão só. Como escreveu J. R. Guzzo em artigo para a revista Veja de 26 de junho deste ano: “Não é apenas o Congresso. Há, nesse mundo de treva, o resto dos políticos – no nível federal, nos estados e municípios. Há também outras empreiteiras de obras, empresários escroques, bancos com problemas junto a delatores e mais um montão de gente”. 
 
Não há dúvidas que a instabilidade política gera novas dificuldades para o ambiente econômico e reduz ainda mais quaisquer perspectivas boas, seja para consumidores, seja para investidores. Aliás é o que indicam os índices de confiança produzidos pelo IBRE/FGV, que apontam a “incerteza econômica” como um dos principais fatores de “desconfiança”. Em abril deste ano o índice alcançou o ponto mais alto desde as eleições de outubro do ano passado.
 
O judiciário, nossa última esperança, já a alguns anos dá sinais inequívocos de estar em constante conflito, dividido em grupos antagônicos e com comportamento explicitamente político, como dito pelo professor da FGV, doutor Oscar Vilhena Vieira: “é exasperante que a instituição (no caso o STF) que tem por responsabilidade precípua a guarda da Constituição também esteja dando sinais de convulsão. Não apenas porque alguns membros do tribunal, como o ministro Gilmar Mendes, assumiram um comportamento despudoradamente político, como porque a corte, como tenho insistido, perdeu a colegialidade. Ao assumirem individualmente funções que constitucionalmente são do colegiado, os ministros agravam a crise de autoridade do Supremo e reduzem sua capacidade de contribuir para o desfecho da crise política”. Mais do que isso só mesmo a clara demonstração dada pelos próprios juízes do STF que entende a Justiça estar acima dos demais poderes da República, inclusive da justiça e da Constituição, que tanto eles dizem querer defender.
 
No plano econômico, mais especificamente, o que se vê é uma enorme dificuldade para “colocar as coisas em seus devidos lugares”. Embora, como escreveu o economista José Roberto M. de Barros, haja segmentos econômicos que iniciaram uma pequena reação (mercado de capitais, atividades financeiras e ramo imobiliário) e, segundo o ministro Paulo Guedes, é preciso esperar mais um ou dois anos para que a “liberal-democracia” comece a presentar seus primeiros resultados, o fato concreto é que o IBC-Br, ao apurar queda de 0,13% no segundo trimestre deste ano, dá fortes indicações de que haverá uma nova “recessão técnica” (resultados negativos em dois trimestres consecutivos). Com investimentos em níveis muito baixos (privados e públicos), se considerarmos as reais necessidades brasileiras, um Estado falido (2) e desestruturado e com famílias consumindo o mínimo necessário, parece que o País perdeu sua capacidade de se “reinventar” com rapidez, sempre que alguma crise ocorria. E se observamos a situação da economia mundial atual, também em grandes dificuldades, o horizonte não é dos melhores para o futuro próximo.
 
A indústria, que direta e indiretamente impulsiona todos os demais setores da economia, não vem bem e parece manter sinais claros de estagnação. Os indicadores também não são bons na maioria dos demais segmentos da economia brasileira e o setor de serviços dá mostra de leve desaquecimento, desacelerando também o setor varejista. Aqui cabe mais uma consideração: reformas pelo lado da “oferta”, como por exemplo a MP da Liberdade Econômica, são necessárias, mas insuficientes para a retomada do crescimento, caso não haja reformas que ativem o lado da “demanda”. Se o desempregado não compra porque não tem dinheiro, aquele que está empregado também deixa de comprar com medo de desemprego. E o investidor desaparece.
 
Mesmo considerando que temos alguma tranquilidade em determinados parâmetros da economia no momento, principalmente no que diz respeito ao controle da inflação, da queda da taxa de juros e do equilíbrio nas contas externas, os problemas do déficit nominal do governo (aquele que inclui os juros) e da dívida pública, estão longe de serem equacionados. 
 
E se isso tudo não bastasse, o “descaso” expressado diariamente quando são tratados os assuntos das áreas sociais e a incompetência ao se lidar com temas ligados às relações exteriores e o meio ambiente, tem criado clima ainda mais perturbador e de desalento.
 
É preciso dizer que não são as inúmeras ‘gafes’ produzidas pelo presidente Bolsonaro que devem assustar o brasileiro, já acostumado com presidentes que dizem bobagens. Entretanto, volto a repetir, parece que o governo atual, na medida em que o tempo passa, se sente ‘mais senhor’ da cadeira que ocupa, fazendo com que o autoritarismo e a vontade de agredir surjam de forma cada vez mais transparente. Como ainda estivesse em campanha política, utilizando-se de discurso fácil e populista, Bolsonaro parece aspirar a posição de um “messiânico salvador da pátria” e que, se preciso for, sacrificará a própria Democracia. 
 
Com a permanência da crise econômica, o crescimento da radicalização (como já se disse, o “nós x eles” continua, só que agora com sinais trocados) e as exageradas críticas à Política, cria-se um campo fértil para ideias mais ousadas. Aqui, gostaria, mais uma vez, recorrer ao artigo do Almirante Mário Cesar Flores, publicado no Estadão dia 05 de maio deste ano: “o quadro difuso sugere preocupação, porque ele pode vir a ser instrumento da tendência, que vem crescendo no mundo, de retrocesso da democracia, por ora discreto ou disfarçado – com exceções nem discretas nem disfarçadas: Venezuela, Turquia, Hungria... –, que flerta com ilusões redentoristas do nacionalismo autoritário”. E continua o Almirante: “o Brasil não está imune a esse risco e a pressão psicossocial do quadro negativo contribui para legitimar e até estimular o processo: o povo é levado a ver em lideranças populistas de propensão autoritária, na legislação forte e em políticas de questionável consistência democrática a solução para o déficit da condução política democrática”. 
 
O jornalista e professor Rolf Kuntz, no Estadão do último dia 11, entende que os “arroubos autoritários” de Bolsonaro... “não são meros deslizes verbais. São significativos e compõem uma figura mal ajustada à democracia e ao Estado de direito”. E concluiu: “Até onde seus apoiadores mais entusiasmados, incluídos alguns grandes empresários, estarão dispostos a seguir essa figura? Essa é a questão mais preocupante”.
 
Talvez seja muito cedo para “julgar” o novo governo e o próprio presidente, mas queiramos ou não, o Brasil já está completando mais uma década perdida, o desemprego continua em níveis perigosos e o PIB de 2019, se crescer, ficará próximo dos 0,8%. Somando-se a isso a falta de recursos para que se prestem serviços públicos de ‘razoável qualidade’ e a desastrada atuação política deste governo, não há razões concretas para se acreditar em melhoras no curto ou médio prazos. Tempos “perigosos”, sem dúvida, serão vividos.  
 
É imprescindível que os chamados “cidadãos de bem”, juntamente com as lideranças (3) mais esclarecidas e conscientes deste País e sem se envolverem em uma briga de “torcidas”, ajudem para que as reformas econômicas estruturantes sejam realizadas. Assim como é preciso estar atento, não descuidar da Política (com P maiúsculo) e atuar firmemente na defesa da Democracia, sempre o caminho mais curto e tranquilo para que se saia deste crise que persiste.
 
(1) Dados do IBGE, que utiliza critérios do Banco Mundial, dão conta de que o Brasil, em 2017, tinha 54,8 milhões de pessoas pobres, isto é 26,5% da população total. E dentre essas, 15,2 milhões que viveram abaixo da linha da extrema pobreza;
 
(2) A reforma da Previdência recém aprovada na Câmara e agora em discussão no Senado, embora extrema e urgentemente necessária, não é, como se fez parecer, o “remédio” para todos os males. E, entre outras exclusões discutíveis, ainda não inclui a reforma de Estados e Municípios. Apenas como observação, o déficit previdenciário dos Estados, em 2018, conforme noticiado, foi de R$ 101,3 bilhões;
 
(3) William Waac no Estadão de 15.08.19: “Tirando o submarxismo típico de baixa produção intelectual que atribuía o atraso relativo de Argentina e Brasil a alguma malvada “imposição” de interesses externos, consolidou-se nos últimos anos o consenso de que escolhas políticas, travas internas, problemas domésticos e, principalmente, ausência de líderes comprometidos com um horizonte de longo prazo é que ajudam a entender as dificuldades de ambos para sair da presente estagnação econômica e resolver problemas tão básicos como pobreza e gritante desigualdade – as mesmas mazelas de sempre, agora agravadas por índices inéditos de violência“ (grifos meus).
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