Classe Dirigente, Constituinte, Eleições e Sociedade Civil - Parte II*

Publicado em
23 de Julho de 2018
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Como explicitado na Parte I deste artigo, a “farra fiscal” que está agravando a situação atual e complicando ainda mais o futuro do Brasil, colocando não só nas mãos de nossos próximos governos, dificuldades e incertezas ainda maiores, mas para todo o brasileiro, não foi produzida apenas pelos nossos políticos ou detentores de cargos nos diversos poderes constituídos, como muitos fazem parecer ser.

Fernão Lara Mesquita, em seu artigo no Estadão de 14 pp (“O valor mais alto que sempre se alevanta”) reconhece que “não é propriamente uma novidade a resistência do Congresso para contribuir com o ajuste fiscal. Em geral, e muito especialmente em ano eleitoral, o Poder Legislativo é parte do problema do desequilíbrio das contas públicas, aumentando despesas e concedendo novas desonerações tributárias. Em muitos parlamentares impera a mentalidade de que a responsabilidade fiscal seria assunto do Poder Executivo. Nessa equivocada visão, promover o equilíbrio entre despesas e receitas seria tarefa apenas do Palácio do Planalto. A irresponsabilidade fiscal do Legislativo é um dos grandes problemas nacionais”.

Infelizmente essa mentalidade (ou cultura?) não é exclusividade daqueles que exercem funções no Legislativo. Ela está presente no pensamento e no comportamento da quase totalidade dos servidores públicos, em todas as instâncias de poder, e diria até, do próprio executivo, uma vez que a conta dessa irresponsabilidade fiscal sempre será paga pelo povo brasileiro. O poder judiciário, por exemplo, que deve estar ciente da grave crise pela qual passa o Brasil, não teve qualquer problema em pleitear, para si, o poder e a liberdade de reajustar seus próprios salários. Além do presidente da AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros – (“a categoria já tem uma perda acumulada de 43% entre 2006 e 2018”, disse ele), a própria presidente do STF fez pressão, ao dizer que é “obrigação constitucional rever os vencimentos dos servidores”.

Para complicar ainda mais, muitos executivos do setor privado também pensam e agem dessa mesma forma, como bem demonstraram os exemplos na Parte I deste artigo, a Lava Jata e uma centena de outros exemplos divulgadas diariamente pela imprensa brasileira. Os ‘servidores públicos’ ao tomarem essas decisões, além de seus interesses particulares, também foram pressionados, ou apoiados, para defender os interesses dessa parte da sociedade civil que se acostumou, ao longo de muito tempo, resolver seus problemas à custa do Estado, isto é, à custa de todos nós.

Muita gente “séria” ajudou para que tudo isso ocorresse, notadamente as categorias mais bem representadas, os grupos mais organizados da sociedade civil, constituídos por servidores públicos ou privados, ou de representantes de entidades sindicais patronais ou de trabalhadores, todos interessados e participantes do que chamei de Classe Dirigente fizeram seus lobbies e suas pressões. Artigo da jornalista Vera Magalhães, do último dia 15 no Estadão (“Todos cavando o poço”) comentou muito bem esse ponto ao escrever que “na saideira do Congresso antes do recesso, houve um show de irresponsabilidade que cobrará um preço incalculável a um País que insiste em cavar, dia a dia, um poço ainda mais fundo para si”. Talvez por falta de espaço, Vera Magalhães ilustrou seu comentário somente com o triste comportamento da classe política brasileira, incluindo aí representantes do legislativo, executivo, judiciário e a maioria dos candidatos à presidência da República nas próximas eleições. Mas acho importante insistir e complementar: esse comportamento, nada republicano, além de beneficiar os próprios proponentes, também ajudou seus “amigos” de poder que, como já exaustivamente comentado, compõem a quase totalidade da classe dirigente brasileira. Com a ajuda de parte razoável da imprensa e de processos de comunicação muito bem elaborados, ainda conseguem apoio de grande parte da opinião pública.

Entretanto é de assustar, e muito, quando até o Judiciário, sempre nossa última esperança, vira as costas para o País e seus reais problemas. Fernão Lara Mesquita, aqui já citado, comenta o quanto esse comportamento, indiferente à realidade atual da sociedade brasileira afronta, até mesmo, o Estado de Direito que, como todos nós sabemos, é imprescindível para a manutenção da liberdade política e a segurança da oposição. Texto de Mesquita: “os favretos do STF, que acabam de dar fuga ou apagar os pecados da cúpula da quadrilha, fixaram a jurisprudência de que os fatos, a lei, a Constituição e até as sentenças deles próprios não valem nada, tudo pode virar do avesso conforme a “turma” que estiver de plantão”. Aliás, não foi isso o que aconteceu no “impeachment” da ex-presidente Dilma Roussef, quando os então presidentes do STF e do Congresso Nacional não cassaram os direitos políticos dela? Não é isso o que acontece quando ministros da mais alta corte do País continuam ignorando e desrespeitando decisões colegiadas?

Não há dúvidas que nossa legislação, consolidada na Constituinte de 1988 (com 250 artigos e 114 disposições transitórias) e posteriormente emendada (99 ao todo, desde a sua promulgação), é demasiadamente grande e complexa e dificulta soluções mais rápidas e profundas. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) existem em vigor, no Brasil, 5,5 milhões de normas legais nas três esferas da Administração Pública. Somente no âmbito federal há 180 mil leis. Segundo artigo publicado no site Contadores.CNT.Br, em janeiro deste ano (“Burocracia Tributária ‘Mata’ as Empresas”), de Cleber R. Zanetti, e também de acordo com levantamento do IBPT, 95% das empresas no Brasil pagam mais impostos que deveriam. Ainda, segundo esse artigo “revestida de normas, regras e minúcias, a burocracia advinda do nosso sistema tributário pode ser, em muitos casos, mais assustadora que a própria carga. Para ter uma ideia de como pode ser espantosa essa situação, desde 1988 quando se promulgou nossa Carta Magna vigente, foram editadas a cada dia, 46 novas normas, totalizando 12 mil atualizações ao final do ano – 5,8 por hora útil! Um verdadeiro absurdo.

Óbvio, portanto, que após “tantos remendos” a legislação existente já se mostra razoavelmente superada e ineficaz diante da nova realidade e da nova complexidade que se apresentam. Ora, se uma Constituição, e seu conjunto de leis, são instrumentos para ajudar a gestão de toda a sociedade, estimulando ou inibindo determinadas comportamentos, é preciso estar atento para as mudanças que ocorrem na sociedade, cada vez com maiores frequência e impacto, sejam elas políticas, econômicas ou sociais. Se as crises são de outro tipo, de outra forma e com outras causas, essa legislação precisa estar constantemente adaptada.

No caso do Brasil, como demonstrado em parágrafo anterior, foram muitas as alterações na legislação e não raras as vezes em que se deram somente para perpetuar o poder nas mãos dos poderosos e manter seus privilégios, mesmo que ilegítimos ou imorais. O que se conclui, quase que automaticamente, é que tudo o que há de ‘pior’ de nossa classe dirigente, depois de se apoderar do Estado aproveitou para legislar em causa própria, onde “tudo virou legal” (do fórum privilegiado ao auxílio paletó, tudo virou direito adquirido), estabeleceu agendas irresponsáveis, para, posteriormente, apoderar-se da sociedade e do mercado. Não hesita, inclusive, em ignorar os valores do Estado democrático de Direito, da Ética e da Moral.

Há que se compreender, consequentemente, que o excesso e a má qualidade das normas contribuem para que o Estado brasileiro seja, além de muito caro, lento, burocrático, ineficiente, parcial e propício à corrupção, na medida em que, como diz ditado popular, “criam-se dificuldades para se vender facilidades”. Consequentemente a população brasileira, impotente e até com um determinado grau de inconsciência, vive em ambiente de “certa anarquia”, não consegue viver dignamente e ainda suporta todo o peso da ineficácia de um Estado, burocrático, obsoleto, ineficiente, corporativista e cartorial.

Não foi por outro motivo – e outros diversos também - que os advogados Modesto Carvalhosa, Júlio Bierrambach e José Carlos Dias, defenderam, em artigo publicado no Estadão dia 09.04.2017 (“Manifesto à Nação”), a necessidade de se mobilizar a sociedade objetivando a elaboração de uma nova Constituição. Segundo eles, a (Constituição) de 1988 “transformou a burocracia num obstáculo perverso ao exercício da cidadania”, pois “fruto de um momento histórico bastante peculiar, o fim de um regime de exceção, que não corresponde mais à realidade do Brasil, (a Constituição atual) representa um conjunto de interesses e modelos que já em 1988 estavam em franca deterioração no mundo civilizado”. Ainda em março deste ano o editorial do Estadão (“A reconstrução do Brasil”) vai na mesma direção: “as quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome”.  

Como escrevi em artigo à época, publicado no site do Guia do TRC (“Mobilização e Constituinte” - 09.03.18), uma Constituinte independente do Congresso atual e daquele a ser eleito nas próximas eleições. Através de eleição específica e direta e com datas definidas de início e término de trabalhos, deveria ser estabelecida uma nova Assembleia Nacional Constituinte que, contando com pessoas da sociedade civil, sem mandato e proibidas de disputar, concorrer ou exercer quaisquer cargos públicos durante 15 ou 20 anos seguintes após o seu término, teriam, pelo menos é o que se espera, maiores compromissos com a nação.

E por que uma Constituinte? Como escrito em meu artigo já citado, porque o Brasil “precisa voltar à racionalidade do direito e não apenas do poder, transformado em poder absoluto pelos grupos que se apropriaram do Estado. Para que se evite o arbítrio e se retome o respeito às leis, para que, ao limitar o poder do Estado, se resgate a isonomia e à subordinação de todos às leis estabelecidas. “Escrever uma nova constituição é deixar claro, com estardalhaço, que as coisas vão mudar. Que a sociedade é outra. Que se organizará diferentemente. Que a vida de todos ali não será a mesma”, escreveu o professor e doutor Clóvis de Barros Filho no capítulo “O que é política”, parte integrante do livro “Política: Nós também (não) sabemos fazer” (Editora Vozes, 2018 – Clóvis B. Filho e outros).

Está muito claro que a política continuará gerando mais dúvidas do que certezas, pois se sabe que será impossível maiores avanços – inclusive econômicos e sociais - enquanto o poder político estiver centralizado nas mãos da parte corrupta e incapaz da classe dirigente. A conclusão deste artigo fica para a Parte III.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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