Aos trancos e barrancos (ou de carteiradas em carteiradas) o Brasil vai seguindo seu caminho para um futuro cada vez mais imprevisível.*

Publicado em
10 de Dezembro de 2016
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Um dos significados da expressa popular “aos trancos e barrancos” é o de que, de algum jeito, de alguma forma, e por pior que seja, continuaremos caminhando em busca de algum objetivo, mesmo que este também não esteja muito bem definido. Serve, também, para explicar um momento no qual a humanidade (1), ou mesmo as pessoas (2), simplesmente para continuarem vivendo, tenham que sofrer muito e dispender, inclusive, enormes doses de sacrifício. Pode significar, também, que nós faremos o que tiver que ser feito, mesmo que de “uma forma desajeita ou de uma maneira improvisada” (3).

Por outro lado, existe a expressão “carteirada” (4), que segundo a “Wilkipédia” é o nome que se dá a “uma situação na qual se busca vantagem ou privilégio em razão de seu cargo, profissão, condição financeira ou social. Usualmente na ânsia de obter pequenas vantagens não financeiras, como por exemplo, valer-se de sua condição para facilitar a obtenção de preferências, favores, tolerâncias e/ou cortesias, fato que, em condições normais, não seria acessível aos cidadãos comuns”.

Não há qualquer dúvida que o país vive um momento extremamente grave e que os poderes constituídos (Judiciário, Executivo e Legislativo) precisam encontrar soluções e dar respostas urgentes para toda a sociedade.

Conforme disse a própria Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmen Lúcia (5), “é preciso agir para que a sociedade não desacredite no Estado, que é a opção única colocada”, uma vez que, atualmente, “há enorme intolerância com o poder público” e que, sem dúvida, “nos leva a pensar em soluções para que a sociedade não desacredite no Estado”. “O Estado tem sido nossa única opção. Ou a democracia ou a guerra”.

Entretanto parece que nossos governantes – em todos os poderes e com ânimos cada vez mais exaltados - têm colaborado muito mais com a “guerra” do que com a democracia, agravando, de forma perigosa, as crises institucional e política que já se abatem sobre o País há alguns anos, mais notadamente, neste ano em curso.

O recente episódio – liminar de afastamento do Presidente do Senado, não acolhimento da liminar expedida pelo Sr. Renan Calheiros, não cumprimento dessa liminar pela Mesa do Senado (6) e julgamento final do STF – demonstra como andam tensas e fragilizadas as relações entre os três poderes. E como politizadas estão essas discussões. Infeliz e temerariamente, a demonstração clara e inequívoca, nesse episódio é a de que a lei não é igual para todos.  

Mesmo no próprio STF há divergências e “brigas” que, pelo que se vê, não são apenas discussões sobre teses jurídicas, mas sim e sobretudo, embates nos quais a vaidade e a arrogância prevalecem, deixando-nos, a todos, em estado de atenção e de perplexidade. O mais recente exemplo ficou por conta do Ministro Gilmar Mendes, do STF, quando afirma que a decisão de seu colega, o Ministro Marco Aurélio, “atropela julgamento e configura crime de responsabilidade” (grifos meus), pois a liminar que afasta o Senador Renan Calheiros, da Presidência do Senado, é ilegal. Pior do que isso: Gilmar Mendes, Ministro do STF, pede a saída do também Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello.

Enquanto isso, e simultaneamente, manifestações e movimentos populares, de uma forma geral, que com as exceções de sempre foram realizadas com tranquilidade e civismo, têm refletido, de forma clara e indiscutível, a insatisfação da maioria da população brasileira perante a grave situação econômica na qual se encontram, mas, também e fundamentalmente, o total desprezo e descrédito com relação à quase maioria da classe política brasileira. Classe política, aqui, tem um sentido amplo: partes do judiciário, do legislativo e do executivo. 

É fácil constatar que a maioria dos cidadãos que tem participado das manifestações populares, inclusive a realizada no último domingo, tem, como objetivo comum, a defesa da Operação Lava Jato, a prisão dos políticos corruptos (Renan Calheiros e Rodrigo Maia, respectivamente presidentes do Senado e da Câmara Federais foram os mais citados) e, sobretudo, a defesa do Estado Democrático de Direito. Ressalte-se: a manutenção de um Brasil democrático, republicano e respeitador da Constituição e de suas instituições apareceram, sempre, como itens reivindicatórios máximos. 

Entretanto, para se alcançar essa condição, reconquistar a confiança, por parte dos governantes junto à população brasileira, passa a ser condição imprescindível. E esta confiança, sem dúvida, não será obtida enquanto nossos dirigentes, de qualquer um dos poderes constituídos, utilizar a “carteirada” como expediente. No episódio Renan, mais especificamente, além de sinalizar que nem todos são iguais perante a lei (ele simplesmente ignorou uma decisão judicial (7)), a informação transmitida a todos é a de que nossos poderes não se encontram no mesmo nível de igualdade como deveriam estar, uma vez que o Senador Renan Calheiros não reúne condições morais – por ser réu - para exercer, mesmo que eventual e provisoriamente, a Presidência da República, mas tem totais condições para exercer a Presidência do Senado. Renan entrou em briga aberta com o STF, e a justiça de uma forma geral e, infelizmente para a Democracia e todos os brasileiros, ele ganhou!

Diferentemente do que se espera, portanto, os sinais dados pelos nossos governantes, pelo menos ultimamente, estão distantes dos anseios da grande maioria da população brasileira e não são condizentes com um país que se diz democrático e republicano. Há que se mudar e transmitir sinais claros de que os governantes estarão trabalhando, honesta e concretamente, na busca da melhoria do sistema representativo e da política brasileira de uma forma geral. Repito: é fundamental que a população volte a acreditar nas instituições brasileiras, na política (8), em seus políticos e em seus líderes (9). 

O trabalho na busca de soluções para os principais problemas brasileiros tem que ser prioridade, muito embora e infelizmente, mesmo não havendo tempo a perder, nossos políticos, como se vivessem em outro mundo, ainda continuam trabalhando e se ocupando apenas para resolver seus próprios problemas (10). Inclusive, e quando necessário, ao custo de alguma “carteirada”. 

A Democracia ainda é a única forma de governo na qual o poder supremo é do povo e, através dos representantes eleitos, em seu nome é exercido. Tocqueville (11), dizia que “a Democracia visa à igualdade na liberdade”. Ao contrário disso, “um governo ditatorial ou déspota, tem poder absoluto e o exerce como lhe convier”. 

A sustentação da Democracia depende de um sistema político e representativo forte e no qual os três poderes, em igualdade de condições, sem vaidades e sem arrogância (é preciso evitar que disputas pessoais se transformem em guerra entre os poderes, como fez Renan Calheiros no episódio aqui já citado), mas num ambiente de respeito mútuo, trabalhem para o mesmo bem comum. Mesmo que seja “aos trancos e barrancos”, mas sem “carteiradas”. 

(1)    Rainer Gonçalves Souza, graduado em história ("Aos trancos e barrancos" –Brasil Escola. Disponível em http://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/aos-trancos-barrancos.htm), comenta que “ao longo da História, observamos que as sociedades humanas foram colocadas a frente dos mais diversos desafios. O processo de dominação da natureza, a criação de máquinas e a compreensão de outras experiências foram essenciais para que as dificuldades fossem progressivamente superadas. De fato, de simples e frágil primata, o homem passou a explorar o seu meio em uma escala jamais antes observada.
Chegando até o mundo contemporâneo, vemos que muitas dificuldades foram superadas e outras ainda estão por vir. Toda essa visível dificuldade nos mostra que as grandes civilizações venceram o desafio da sobrevivência “aos trancos e barrancos”. Para alguns, o uso dessa expressão remete a uma estrada tortuosa, repleta de desafios e várias armadilhas. Na verdade, para compreendermos a origem dessa curiosa expressão, devemos nos reportar à Península Ibérica nos tempos medievais. A palavra “tranco” era empregada para fazer menção aos saltos que um cavalo dava ao longo de uma trajetória percorrida. Por outro lado, o “barranco” faz justamente referência aos obstáculos e valas que o tal equino deveria superar em cada um de seus saltos. Segundo os levantamentos do folclorista Câmara Cascudo, o emprego idiomático desses termos foi pioneiramente empregado por Alfonso Martinez de Toledo, um escritor espanhol do século XV. Em sua obra El Corbacho, onde realiza um rico tratado sobre as artimanhas do amor tolo, há uma curta frase em que o termo “a trancos ou barrancos” aparece com o sentido de tarefa realizada com muito esforço.

(2)    “Aos trancos e barrancos”, musica de Edinho da Mata e Matogrosso, interpretada pelas duplas João Paulo e Daniel e Mato Grosso e Mathias, expressa a triste situação de uma pessoa que perdeu seu amor: “Aos trancos e barrancos eu vou me aguentando sem ela saber. Essa paixão ardente sei que infelizmente não dá para esquecer. Mesmo assim vou levando arrastando a paixão. Que meu coração quer. Por bem ou na marra”. 

“Aos trancos e barrancos” também foi o título de uma música de Raul Seixas, na qual ele dizia: “Eu vou pendurado na janela. Vou mais pensando nela que esse sujo pelo chão. Eu vou descascando a minha vida. Sujando a avenida com meu sangue de limão”.

(3)    Significado de “aos trancos e barrancos” segundo publicação feita na Internet, em 30.04.2009, pelo Senhor José Luiz, de São Paulo, e uma expressão popular que significa: de forma desajeitada; de maneira improvisada.

(4)    A expressão “carteirada” foi popularizada pelo Senador Romário ao propor, em novembro de 2014, um projeto de lei (8152/2014) para que se acrescentasse, no Código Penal, como crime tipificado, a famosa “carteirada”. “O agente público que utilizar o cargo ou a função para se eximir de cumprir obrigação ou para obter vantagem ou privilégio indevido poderá pegar de três a um ano de detenção”. E temos, também, a “concussão”, crime tipificado no Código Penal Brasileiro como sendo o ato de exigir para si ou para outrem, dinheiro ou vantagem em razão da função, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.
(5)    Entrevista feita pelo jornalista Evandro Éboli, de O Globo, no último dia 5.  
(6)    Dora Kramer, no Estadão do último dia 07, foi clara: “Não dá para entender o Senado ao se confrontar com uma decisão oriunda do Supremo Tribunal Federal. Ou sentença judicial não é para ser cumprida? Instabilidade institucional quem provoca é o Senado ao afrontar decisão judicial”. A Sra. Kramer foi ainda mais incisiva: “O senado está anarquizando o ambiente institucional”.

(7)    Como disse o ministro Marco Aurélio Mello: “triste exemplo para o jurisdicionado de uma forma geral”. O descumprimento da ordem judicial, inclusive ignorando o Oficial de Justiça é uma atitude “inconcebível, intolerável e grotesco”.

(8)    “Política é a única saída. Como os políticos sabem, mas muitos preferem esquecer ou nunca souberam, não há saída menos ruim fora da política”. - José Roberto de Toledo para o Estadão, dia 05/12/16. “Nos últimos 30 anos, o Brasil trocou um oligarca velho por um oligarca novo, que não durou, por pensar que tudo podia ditar. Seu vice, que julgavam louco, estabilizou a economia e abriu caminho para um "príncipe" popular, mas que gastou seu cacife para ser reeleito. Sem fichas, abriu caminho para um populista que, no auge, sonhou ser divino. Pensando na eternidade, este se fez suceder por uma tecnocrata alheia à política eleitoral. Deu Temer”.
(9)    A falta de lideranças políticas e empresariais, no momento brasileiro atual, foi objeto de artigo específico, escrito aqui mesmo neste Portal. “Sem lideranças capazes é impossível alcançar patamares altos de desenvolvimento” (Portal Guia do TRC de 03/10/16).

(10)    “A recuperação do Brasil é difícil por si só, mas se depender de grande parte dos políticos brasileiros, ela será impossível” (Portal Guia do TRC de 23/11/16).

(11)    Alexis de Tocqueville (1805-1859), francês nascido em Paris, foi morar nos Estados Unidos e escreveu seu famoso livro “Da democracia na América” (1840). “A democracia visa à igualdade na liberdade. O socialismo deseja a igualdade na limitação e na servidão”. Apesar de acreditar na Democracia, Tocqueville alertava para alguns perigos, tais como o materialismo e o excesso de individualismo (O Livro da Política, Editora Globo, 2013).

* Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes, consultor de empresas e professor do curso de Logística Empresarial do GVPec, da EAESP/FGV.

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